Uma irregularidade denunciada ao longo dos anos e sem efetiva solução segue permitindo que dinheiro público escoe sem controle na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. É o caso de servidores com altos salários que tentam burlar o expediente. Nesta reportagem, o protagonista é o servidor público concursado Luís Fernando Coimbra Albino, 55 anos.
Com salário bruto de R$ 24,2 mil, ele ficou pelo menos 131 dias fora das suas funções desde janeiro de 2017, usando atestados médicos para não trabalhar. Albino seria um dos campeões de afastamento do serviço por motivo de saúde no Legislativo gaúcho.
Licenças para tratar enfermidades são previstas em lei. Entretanto, o Grupo de Investigação (GDI) da RBS apurou que Albino participou de atividades não ligadas ao Parlamento em dias nos quais alegava estar enfermo e necessitando de repouso.
Devido a essas suspeitas, a Polícia Civil abriu investigação e desencadeou, na manhã desta quarta-feira (27), a Operação Repouso Absoluto. Buscas estão sendo feitas na Assembleia Legislativa e em um endereço ligado ao servidor.
A polícia apura crimes de peculato, falsidade ideológica e associação criminosa. Há suspeita de uso de atestados médicos ideologicamente falsos.
Ao longo de meses, de forma intercalada e em dias aleatórios, o GDI monitorou a rotina do servidor por meio de informações públicas — nas redes sociais, por documentos ou pessoalmente. Ele foi flagrado em encontros políticos e em viagens pelo partido ao qual é filiado, o Solidariedade, e até em audiências judiciais, atuando como advogado.
Albino, lotado este ano na Comissão de Segurança e Serviços Públicos da Assembleia, também é secretário de assuntos jurídicos do Solidariedade, conforme consta no site do partido. Em 2016, ele se candidatou a vereador na cidade de Tramandaí, onde tem casa, e ficou como 13º suplente pela coligação PP-PRB-PTB-DEM-SD.
A apuração do GDI mostrou que, em um ano, entre janeiro de 2017 e janeiro de 2018, o servidor somou 91 dias não contínuos fora do trabalho devido a supostas doenças. Foram oito licenças para tratamento de saúde. Ao longo de 2018 até o começo de 2019, foram pelo menos mais três licenças para tratar enfermidades, somando um total de 40 dias sem poder atuar no Parlamento.
As suspeitas de possível fraude em documentos médicos foram levantadas por funcionários que desconfiavam da ausência de Albino e encaminhadas ao GDI. A reportagem registrou situações em que ele participou de eventos do Solidariedade, fez viagens com o vereador Clàudio Janta (SD), presidente estadual da sigla, e atuou em processos e audiências judiciais enquanto estava, supostamente, doente.
Os flagrantes
Em novembro do ano passado, durante um dos períodos de afastamento de Albino, o GDI flagrou o servidor saindo de um prédio na Avenida Duque de Caxias cujo endereço ele declara, no site da OAB, como sendo de seu escritório de advocacia. Dirigindo uma caminhonete Range Rover preta, ele parou na Rua Caldas Junior para um homem entrar no carro e, em seguida, saiu da cidade. Por volta das 12h30min, chegou a Caxias do Sul.
Em 15 de março, o GDI flagrou o servidor participando de audiência judicial em mais um dia em que estava sem cumprir expediente na Assembleia, devido a uma suposta doença. Albino chegou ao Fórum Regional Alto Petrópolis dirigindo uma caminhonete Range Rover preta. Às 10h02min, entrou no prédio do foro. Às 10h38min, saiu para conferir se o carro estava bem estacionado. Às 12h50min, depois da realização da audiência, saiu acompanhado por duas pessoas e foi embora dirigindo a mesma caminhonete.
Em algumas situações flagradas, o servidor saía para atividades externas durante horário de expediente, depois de supostamente ter registrado o ponto biométrico. Foi o que ocorreu em 1º de março do ano passado, quando ele usou parte do horário de trabalho para participar de um encontro estadual do Solidariedade na Capital. Em situação semelhante, no dia 7 de novembro de 2017, na companhia do vereador Janta, Albino esteve em reunião do partido no Palácio Piratini com o então governador José Ivo Sartori.
Se ocupasse um cargo em comissão (CC) ou fosse lotado na área parlamentar, onde há maior flexibilidade para trabalhos externos de interesse dos deputados, Albino talvez tivesse justificativas para atividades fora da sede. Mas, à época dos dois casos citados, ele estava lotado na Divisão de Transporte/Gabinete Militar.
Além disso, o Estatuto do Servidor Público do Rio Grande do Sul proíbe, no artigo 178, o funcionário de se ausentar "do serviço durante o expediente, sem prévia autorização do chefe imediato" (inciso III) e de "entregar-se a atividades político-partidárias nas horas e locais de trabalho" (inciso VII).
Também em 2017, em outubro, durante outro período em que Albino afirmou à Assembleia estar doente, fotos divulgadas no Facebook revelaram que o servidor público estava viajando em atividade pelo partido. O evento era o chamado Rota 77, projeto do Solidariedade de visita a municípios. As imagens mostraram que Albino estava em viagem com Janta e outros colegas da sigla, passando por Rio Grande, São José do Norte e Capão do Leão.
Com a operação desta quarta-feira (27), a Delegacia de Repressão aos Crimes contra a Administração Pública e Ordem Tributária (Deat) do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) pretende localizar documentos que confirmem a fraude investigada. Policiais estão vasculhando arquivos no setor de gestão de pessoal e de recursos humanos para apreender pastas funcionais, dados do ponto biométrico e atestados médicos em nome de Albino. A polícia também investigará a relação do servidor com os médicos que assinaram atestados.
— Estamos apurando as suspeitas de uso de atestados ideologicamente falsos, já que as provas demonstram um número considerável de viagens e atividades de caráter partidário e profissional justamente na vigência de licenças para tratamento de saúde. Vamos verificar outros casos que chamem a atenção pela frequência e quantidade de afastamentos — diz o delegado Max Otto Ritter, que conduz a investigação.
A criação do ponto eletrônico
A instalação do ponto biométrico para controle da jornada de trabalho de servidores do quadro da Assembleia Legislativa foi aprovada em 2012, depois de outra denúncia de Zero Hora.
Foi o caso da recepcionista Lídia Rosa Schons que, com salário de R$ 24,3 mil, cumpria apenas metade do horário de trabalho. Em horas que devia estar cumprindo a jornada, ela costumava passear com seu cachorro na Praça da Matriz, em frente ao parlamento. ZH fez flagrantes à época.
Um mês depois da publicação da reportagem, que mostrou descontrole nos mecanismos do Parlamento ao atestar efetividades, a Assembleia aprovou o ponto biométrico. O controle só começou a funcionar, no entanto, em abril de 2014.
Lídia já foi condenada em um processo a ressarcir valores ao Parlamento e ainda responde a outra ação judicial. Agora, o caso do servidor Luís Fernando Coimbra Albino coloca em xeque novamente os mecanismos de controle do parlamento.
Contraponto
O que diz Luís Fernando Coimbra Albino:
"Vou esperar ver o teor do inquérito para me manifestar".
O que disse Clàudio Janta:
"Não possuo nenhum vínculo com o servidor citado. Tenho uma trajetória digna e uma responsabilidade como homem público que não me permitem ficar calado e passivo diante de uma desrespeitosa veiculação do meu nome, que tenta macular a minha história e minha imagem."
O que disse a Assembleia Legislativa:
Por meio de nota, informou: "A Assembleia Legislativa já determinou a abertura de uma sindicância e uma solicitação ao delegado responsável pelo caso das informações obtidas pela operação. Após a análise desse material, será realizada a investigação de qualquer irregularidade que tenha lesado os cofres públicos. Esta e qualquer denúncia referente ao uso indevido dos recursos são consideradas prioritárias e serão investigadas com rigor pela gestão da Assembleia Legislativa, buscando sempre os procedimentos adequados e as punições mais severas possíveis".
Confira os momentos em que Luis Albino se ausentou do trabalho, com atestado, para outras atividades.
Por que estamos fazendo esta matéria?
Todo poder público, seja municipal, estadual ou federal, precisa prestar contas à sociedade. Parte do salário do servidor é composto por dinheiro vindo da arrecadação de tributos pagos pelo cidadão. Usar atestado médico falso para justificar ausência no trabalho é crime. É dever da imprensa mostrar isso, assim como é dever dos órgãos de controle oficiais apurarem eventuais irregularidades e, for o caso, punir os envolvidos.
Como fizemos esta matéria?
A paciência foi a principal tônica desta reportagem. A denúncia contra Luís Fernando Coimbra Albino partiu de uma fonte anônima, que lá em 2017 começou a abastecer a repórter Adriana Irion com informações sobre o servidor concursado. Esta mesma fonte já havia passado para Adriana o caso de Lídia Schons, a servidora da Assembleia Legislativa que em 2012 foi flagrada por GZH passeando com cachorrinho em horário de trabalho. Adriana e o fotógrafo Ronaldo Bernardi acompanharam por inúmeras vezes os movimentos do servidor. Sem os flagrantes jamais seria possível comprovar que os atestados médicos eram falsos.
Quais os cuidados que tomamos para sermos justos?
Os dados que a fonte passou à repórter eram verdadeiros, mas, por si só, não comprovavam a irregularidade. Os atestados médicos frequentes existiam, mas era necessário comprovar que o servidor não estava doente. Acompanhamos os passos desse servidor por inúmeras vezes. Os flagrantes foram registrados em fotos e vídeos. Quanto mais exemplos de que não estava doente, mais sustentação a matéria teria. Foi graças a esse trabalho de acompanhar os passos do servidor que a Polícia Civil decidiu fazer uma a operação de busca e apreensão na casa de Luís Fernando.