Duas providências foram encaminhadas pelas autoridades após a publicação da série Perigo no prato, do Grupo de Investigação da RBS (GDI), que descortinou um cenário de risco à segurança alimentar dos gaúchos devido à contaminação de frutas e verduras vendidas na Central de Abastecimento do Rio Grande do Sul (Ceasa) por excesso de agrotóxicos e substâncias inadequadas ou proibidas no país.
O Ministério Público atua em pelo menos duas frentes. Com a Polícia Civil, abrirá investigações criminais para apurar abuso de agroquímicos em plantações e buscará verbas para viabilizar a contratação de laboratório privado para analisar a qualidade dos hortifrútis da Ceasa.
Na segunda-feira, a promotora Caroline Vaz se reunirá com os titulares das delegacias do Consumidor e do Meio Ambiente para discutir a instalação de investigação. O objetivo é apurar responsabilidades e condutas em toda a cadeia, desde os produtores rurais até os comerciantes. Aplicar agrotóxico de maneira abusiva e vender produtos impróprios para o consumo humano são crimes com pena de prisão prevista.
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– Estamos conversando com diversos órgãos, mas, neste caso, vamos verificar os aspectos criminais pelo uso abusivo de agrotóxicos – explicou a promotora, coordenadora do Centro de Apoio ao Consumidor do Ministério Público.
Já o acordo que prevê o monitoramento da qualidade e o nível de resíduos de agrotóxicos nos alimentos vendidos na Ceasa, depois de quatro anos de negligência, sofrerá modificações. Com auxílio da iniciativa privada, o objetivo é garantir que um mínimo de análises de laboratório nos hortifrútis seja concluído.
Uma das principais engrenagens deste termo de ajustamento de conduta (TAC), firmado em 2012 por Ministério Público e órgãos de fiscalização, é o Laboratório Central do Estado
(Lacen), que deveria fazer até 20 análises mensais e emitir laudos para dizer se frutas, verduras e legumes da Ceasa estão contaminadas por agroquímicos. Problemas financeiros, falta de pessoal e máquinas quebradas impediram que a instituição cumprisse o acordo nos últimos anos. Isso foi um dos motivos que inviabilizaram o sucesso do TAC. De 2012 para cá, foram poucos exames, nenhuma punição e os níveis de resíduos de pesticidas não se reduziram.
A promotora Caroline elaborou projeto para tentar resolver o problema: contratar um laboratório privado que faça os exames com celeridade, garantindo a realização de 20 coletas em expositores da Ceasa e emissão de laudos com os resultados mensalmente. Ela avalia a possibilidade de ampliar os exames. O Lacen será mantido no TAC e receberá verbas para executar suas atribuições, mas será cobrado pelo cumprimento de prazos para a entrega de laudos e ganhará o reforço de um parceiro privado.
Como os testes custam caro – em média R$ 1,2 mil cada –, será necessário ter uma fonte de renda para o plano sair do papel. A promotora pretende incluir o TAC da Ceasa no orçamento de 2017 do Fundo para Reconstituição de Bens Lesados, criado em dezembro de 2015. É uma conta, controlada pelo MP, em que são depositadas as multas pagas por infratores que assinam os mais diversos TACs – hoje, mais de R$ 700 mil estão depositados. Pela lei, o dinheiro deve ser aplicado em ações de benefício coletivo e social. Para Caroline, o monitoramento da qualidade dos produtos da Ceasa, questão de saúde pública, se encaixa. Ela apresentará o projeto nos próximos dias, e o conselho do fundo se reunirá na próxima quinta para discutir as iniciativas que serão atendidas com recursos.
– A ideia é ter valor suficiente para dar conta da efetivação e ampliação de análises laboratoriais de produtos hortifrúti – explicou Caroline, adiantando que haverá uma licitação para contratar instituição credenciada.
Se determinada quantidade mensal de análises for garantida por um laboratório privado, o passo seguinte será assegurar que providências sejam tomadas contra infratores. Nos últimos quatro anos, embora a quantidade de análises feitas pelo Lacen tenha sido limitada, foi possível identificar irregularidades. Pela Lei de Acesso à Informação, o GDI verificou que, em pelo menos seis ocasiões, foram flagrados permissionários comercializando produtos com resíduos de Metamidofós, agrotóxico banido do Brasil desde 2012. Pelas regras do TAC, os produtores deveriam ser proibidos de vender a qualidade do produto na Ceasa por um ano. A direção da companhia jamais aplicou as sanções previstas.
Dos produtos coletados pelo GDI na Ceasa – entre morangos, pepinos, alfaces, cenouras e pimentões –, 45% estavam impróprios para o consumo pela presença de resíduos de agrotóxicos acima dos limites permitidos, banidos do Brasil ou não autorizados para as culturas.
Condenados seguem comercializando verduras na Ceasa
A Ceasa abriga condenados por uso abusivo de agrotóxicos na lavoura. É o que mostram testes oficiais obtidos via Lei de Acesso à Informação e análises laboratoriais requisitadas pelo GDI.
Um dos revendedores, mesmo após condenado pela Justiça, foi flagrado outra vez, pelo GDI, com concentração de agrotóxicos em hortaliças em níveis acima do permitido por lei.
A maioria dos vendedores de hortifrutigranjeiros nos quais foi identificado uso irregular de agrotóxicos opta por firmar compromisso que evita condenação judicial. Já foram assinados 130 TACs com o Ministério Público, nos quais produtores garantem que não irão repetir a infração e que passarão a usar só agroquímicos recomendados para a lavoura que plantam, dentro dos limites.
Mas pelo menos nove revendedores de verduras e frutas decidiram brigar no Judiciário. Alguns comercializavam na Ceasa, outros em supermercados ou em ambos os estabelecimentos. Seis fizeram acordo com o juiz e pagaram multa. Três foram condenados, em 2015, em mais de uma instância. Até por terem recorrido, não foram suspensos e seguem fornecendo hortifrútis para a Ceasa.
Com apoio de laboratório da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), a reportagem testou, em outubro, alimentos vendidos pelos três condenados. Em dois deles, não havia problemas. Um terceiro, porém, foi flagrado, novamente, comercializando verdura contaminada com agrotóxico acima do nível permitido, o que pode trazer riscos à saúde.
Trata-se de Yasushi Kiriyama, sócio de duas bancas na Ceasa. Ele já tinha levado duas notificações por excesso no uso de agroquímicos. Em 2010, em uma amostra de couve vendida por ele, analisada pelo Lacen, foi detectado o agrotóxico Metamidofós em níveis não permitidos – na época, a substância era questionada, embora aceita. Agora, é proibida no país. Kiriyama assinou acordo se comprometendo a não mais infringir leis ambientais. Em 2013, porém, foi pego com resíduos do agente químico Lambdacialotrina em quantia acima do permitido.
Kiriyama alegou que o agrotóxico não era o mesmo. Entretanto, o juiz interpretou que ele cometeu crime novamente. O agricultor foi condenado a pagar R$ 30 mil de indenização. Reincidente, recorreu ao Tribunal de Justiça (TJ) e perdeu. Kiriyama insiste que o produto encontrado no segundo teste era outro e considera "ínfima" a quantidade detectada.
– É possível que o pessoal que planta para mim não tenha dado carência (intervalo entre uma aplicação de agrotóxico e outra). Paguei multa, recebi aviso para não voltar a me exceder no defensivo, mas não quero pagar indenização – afirmou ao GDI.
A reportagem resolveu testar mais uma vez a couve vendida por Kiriyama. Duas amostras, de caixas diferentes, foram compradas em outubro na Ceasa e examinadas no laboratório da UFSM. As duas estavam contaminadas com os agrotóxicos Deltametrina e Indoxacarbe em níveis ilegais. A Ceasa foi informada e diz que só tomará posição após receber os laudos. Kiriyama não quis comentar o novo teste.
O histórico de Kiriyama se enquadra no previsto pelo Código de Defesa do Consumidor, ressalta sentença que o condenou, da juíza Eliane Garcia Nogueira (16ª Vara Cível de Porto Alegre).
Crea pune quem dá receitas em branco
A facilidade de compra de agrotóxicos proibidos – demonstrada pelo GDI ao longo da série Perigo no prato – em parte se explica por falhas na orientação técnica ao agricultor. Há plantadores que dispensam agrônomos e agrônomos que receitam agrotóxico sem verificar a lavoura – ou nem sequer indicam, apenas vendem o receituário em branco.
A comprovação dessas práticas ilegais vem do próprio órgão fiscalizador dos agrônomos, o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Estado (Crea-RS). Levantamento feito pela entidade demonstra que, desde 2013, 829 agrônomos ou lojas agropecuárias do RS foram notificados por venda/recomendação/uso de agrotóxico sem receituário. Isso inclui receitas "frias" (assinadas em branco por agrônomos ou técnicos agrícolas) ou receituário aplicado por vendedor não habilitado para essa prática.
A fiscalização do Crea ocorre aleatoriamente (por amostragem) ou mediante denúncia. Um fiscal visita a propriedade, identifica invólucros de agrotóxicos e checa se foram comprados com receita.
A irregularidade mais comum é a venda sem qualquer responsável técnico (agrônomo ou técnico agrícola). Ela representa mais de 70% do total de ilegalidades. O segundo tipo mais recorrente é receituário agronômico em branco, mas assinado (o agrônomo indica químicos, sem visitar a plantação). O terceiro caso mais comum é receita de agrotóxico repassada por profissional que teve registro suspenso ou cancelado no Crea.
– Há casos de acobertamento (produto com notas fiscais e com receituário em branco, mas com assinatura de agrônomo), de produto com notas fiscais de agrotóxico mas sem receituário e de produto sem nota fiscal e sem receituário – diz o gerente de fiscalização do Crea-RS, Marino José Greco.
Penalidades previstas
a) advertência reservada ao agrônomo
b) censura pública
c) multa
d) suspensão temporária do exercício profissional
e) cancelamento definitivo do registro
Infrações em números
Acobertamento
2013: 11
2014: 18
2015: 74
2016*: 4
Exercício ilegal
2013: 1
2014: -
2015: 9
2016*: 16
Falta de responsável técnico na venda
2013: 62
2014: 379
2015: 184
2016*: 71
Total
2013: 74
2014: 397
2015: 267
2016*: 91