Passado e presente se encontram nos versos de Nos Tempos de 23, a canção-tema dos Festejos Farroupilhas deste ano. Com letra de Fernando Espindola e música de Thomas Facco, a canção retoma os principais pontos daquela que foi a última guerra registrada no Rio Grande do Sul, há cem anos.
Escolhida pela Comissão Estadual dos Festejos Farroupilhas 2023, a música foi gravada pelo Alma Gaudéria, grupo surgido em 2007, em Porto Alegre, no qual Espindola é vocalista e Facco é acordeonista. A letra fala sobre guerra por uma eleição em um Estado polarizado, faz questionamentos e lembra os dois principais personagens do conflito: os políticos Assis Brasil e Borges de Medeiros.
— A gente se ateve ao ponto central de o porquê e o que foi (a guerra) e traçamos esse paralelo com o tempo atual — detalha Espíndola.
Invisibilizados
No refrão, os versos questionam se, passados cem anos, os gaúchos vivem em união ou se nos dias atuais seguimos separados por ideias e ideais. O músico confessa que pouco lembrava da história da Revolução de 1923 e buscou a ajuda de um historiador:
— Pedi para me dar um panorama do que tinha acontecido, explicar um pouco da revolução e com as explicações que ele me passou a gente foi construindo a letra.
A canção também aborda personagens silenciados na narrativa do fato: os gaúchos que estavam na linha de frente das batalhas, quando a letra diz que "pouco se reverencia, os da frente nas fileiras, quem vai à luta por ordens", citando os homens com lanças e negros e a mulher Cabo Toco, como era conhecida Olmira Leal de Oliveira, primeira mulher gaúcha a ostentar a farda da Brigada Militar e que lutou na revolução.
— O edital pedia que falassem sobre os invisibilizados. Então, a gente convida a refletir — explica o autor. Na estrofe final, que é declamada, a letra faz referência ao presente com a expressão nos "tempos de 23 atuais" e diz que mulheres, negros e indígenas "ainda buscam direitos iguais".
Com a letra pronta, foi a hora de trabalhar no arranjo da música, feito por Facco:
— Não é um arranjo que a gente costuma fazer normalmente para uma música, é muito mais difícil.
Ele conta que houve muita dedicação na busca por ritmos e batidas para tentar fazer com que os ouvintes entrassem na atmosfera do evento histórico.
— A sonoridade da música remete à Revolução de 1923 — explica.
Embora cada músico tenha trabalhado em um aspecto da composição, Facco destaca o trabalho coletivo:
— A gente trabalhou para a montagem da música em si, e quando precisou mudar alguma palavra para se encaixar dentro de um compasso, ou dentro de uma métrica, foi em conjunto.
É o segundo ano consecutivo em que os músicos criam a canção-tema dos Festejos Farroupilhas. Num só lugar, também composta pela dupla, foi escolhida em 2022.
Lenços vermelhos e brancos
Em meio à agitação política do início dos anos 1920, o conflito começou em reação à reeleição de Borges de Medeiros para o quinto mandato, e Assis Brasil liderou a resistência.
Os chimangos, correligionários de Borges de Medeiros, usavam lenços brancos. Os opositores, que defendiam a descentralização política, usavam lenços vermelhos, os maragatos. A guerra civil seguiu de janeiro a dezembro de 1923, quando foi assinado o Pacto de Pedras Altas que “acomodou interesses”, como cita a canção.
Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Luiz Alberto Grijó entende que os revoltosos estavam mais preocupados com uma ação política do que militar. Do movimento, resultou uma melhor organização dos partidos no Estado.
— Uma renovação e uma readequação dos grupos políticos no Rio Grande do Sul, esse foi o grande resultado desse processo — afirma Grijó.
Novas lideranças, tanto entre os maragatos quanto entre os chimangos, ganharam visibilidade política a partir daquele momento. Entre elas, Getúlio Vargas, Batista Luzardo e Flores da Cunha.
Nos Tempos de 23 - Fernando Espindola e Thomas Facco
Um século se passou
Da última revolução
Assisistas e borgistas
Em guerra por uma eleição
Um Estado polarizado
Se foi as vias de fato
Por interesses pessoais
De Chimangos e Maragatos
Todos recordam os nomes
Dos que empunhavam bandeiras
Mas pouco se reverencia
Os da frente nas fileiras
Quem vai à luta por ordens
Destes se fala pouco
Homens com lanças e negros
E a mulher “Cabo Toco”
Refrão:
Cem anos já se passaram
Da última revolução
Mas depois de tanto tempo
Será que temos união?
Parece que as diferenças
Persistem nos dias atuais
E seguimos separados
Por ideias e ideais
E essa revolução
De Borges e Assis Brasil
Mudou a história do Rio Grande
Mudaria a do Brasil
O tratado de Pedras Altas
Acomodou interesses
E o caudilhismo surgiu
Pra que o país conhecesse
Personagens da história
Que vemos em ruas e livros
E os feitos de lado a lado
Até hoje seguem vivos
Quem lê, compreende a história
Dos que aguentaram o repuxo
Pois luta e revolução
Estão na alma do gaúcho
Repete refrão
Parte declamada:
E mesmo após cem anos
Nos tempos de 23 atuais
Mulheres, negros e indígenas
Ainda buscam direitos iguais
Liberdade, igualdade e humanidade
Estão na nossa bandeira
Que não esqueçamos jamais
Que estes, sim, são ideais