O Centro de Tradições Gaúchas (CTG) é onde as pessoas se reúnem para perpetuar a cultura do Estado, por meio de uma série de manifestações artísticas, desportivas e campeiras. Essas atividades servem para entreter e unir as pessoas que convivem ali.
Por isso, famílias encontram no ambiente do tradicionalismo um lugar seguro e saudável para viver momentos de harmonia com filhos, netos, bisnetos e uma infinidade de amigos. Além de estarem em lugares controlados, sob a observação de pessoas mais experientes, crianças e adolescentes têm a possibilidade de aprender desde cedo a ter compromisso com ensaios e eventos, além de tomarem gosto por música, dança, jogos e atividades campeiras.
— Tradição não é “parar no tempo”. É reconhecer nos exemplos do passado a possibilidade de construir um futuro melhor, honrando os que nos antecederam a partir do culto daquilo que temos de mais genuíno e autêntico — explica a vice-presidente de Cultura do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), Renata Pletz.
Rodrigo Trevisan, 43 anos, que mora em Caxias do Sul, foi ensinado a laçar desde muito cedo. A história começou com seu bisavô e deu origem ao Piquete de Laçadores Marcolino Pinheiro, nome do patriarca, na cidade de Jaquirana, na serra gaúcha.
— Quando criança, muitas vezes fazia vários quilômetros a cavalo para levar os animais para os adultos laçarem — recorda.
Assim como ele, as filhas Cecilia, 12 anos, e Helena, oito, também cresceram nesse meio. Todo fim de semana a família vai para o sítio, em Jaquirana, a fim de praticar. Logo aprenderam a encilhar, andar a cavalo e lidar com o gado. Daí para o tiro de laço, foi um pulo.
— Elas começaram a brincar na vaca parada e a competir, seguindo algumas amigas que laçavam. Assim que completou 11 anos, a Cecilia iniciou a participação a cavalo — relembra Rodrigo.
Inspiração
Helena, quatro anos mais nova, continua na vaca parada (quando se laça sem estar a cavalo, em direção a um cavalete). A mãe, Caren Andelieri, também participa de cavalgadas e outras atividades. Tudo em família.
— Quando eu era bem pequena, sempre tinha esse sonho de laçar com meu pai e minha irmã — afirma Cecilia.
A caçula, Helena, completa:
— Vê-los laçar me inspira ainda mais. Quando a Ceci e eu laçávamos na mesma categoria, eu gostava de poder disputar com ela, porque sou fã dela.
Ambas acumulam títulos na modalidade de vaca parada, e Cecilia também laça a cavalo. Para o futuro, Rodrigo deseja que deem continuidade ao legado de seu bisavô, sem perder outros sonhos de vista.
— As profissões que elas seguirão dependerá do que trouxer maior realização, mas o amor pela cultura gaúcha seguirá sempre com muita intensidade — acredita.
Quatro gerações de mulheres honram a tradição
Izaltina Vasques Soriano, 89 anos, ingressou no tradicionalismo em 1960, no CTG Vaqueanos da Fronteira, em Alegrete. O marido, Ulisses Soriano, foi um dos pioneiros em atividades campeiras com caráter de competição, como o tiro de laço.
Em 1970, mudaram-se para o subdistrito de Vasco Alves, interior do município. Lá, o irmão de Izaltina era patrão do CTG Amizade de Vasco Alves, que o casal passou a frequentar. Ulisses foi patrão por cinco anos, Izaltina por outros dois, a filha Léa, 65 anos, foi patroa pelo mesmo período e o filho, Cristiano, também passou meia década à frente da entidade.
Naturalmente, os netos também foram se dedicando à cultura gaúcha. Fernanda, 44 anos, filha de Léa, mudou-se para Porto Alegre no começo dos anos 2000. Quando deu à luz Letícia, hoje com 16 anos, resolveu que com ela não seria diferente.
Nos primeiros anos, fez questão de levá-la aos Festejos Farroupilhas na terra natal. São as primeiras memórias de Letícia no movimento tradicionalista. Quando tinha por volta de sete anos, foi levada pela mãe e pelo pai, o também tradicionalista Pedro Coelho, ao 35 CTG, em Porto Alegre.
— Buscamos um lugar seguro para ela desenvolver essas atividades. O 35 foi escolhido por toda a tradição de ser o pioneiro — conta Fernanda, em referência ao primeiro CTG da história.
Letícia inicialmente não gostou da ideia de dançar na invernada artística, mas se encantou com a possibilidade de ser prenda – representante do CTG escolhida a partir de um concurso minucioso, que leva em conta diversas provas e quesitos. Estudou, aprendeu a declamar, fazer trabalhos artesanais e tocar violino.
Presença
Depois de muita preparação, a representante da quarta geração da família tornou-se 1ª Prenda Mirim do 35 CTG, conquistando em sequência o título na 1ª Região Tradicionalista e no MTG. Foi reconhecida, então, como 1ª Prenda Mirim do Rio Grande do Sul. Tudo com o apoio da bisavó.
— Ela estava sempre junto, nem que fosse em um colchãozinho no chão. Orientando e sendo referência — lembra Fernanda.
O concurso é promovido em diferentes lugares do Estado, mas ela não abriu mão de estar presente. Assim como fizera com o bisneto Guilherme, que foi Piá e Guri do Estado – os guris também precisam aprender uma série de coisas, como cantar, declamar, conhecimentos gerais e tarefas campeiras.
— Depois que meu marido morreu, pensei em parar, mas meus bisnetos me puxaram de volta. Cheguei a pensar que não os conheceria, tanto que dei meu anel de 15 anos para a Fernanda entregar à Letícia, quando completasse a mesma idade. Mas eu mesma coloquei na mão dela — recorda Izaltina, aos 89 anos, enquanto lembra com precisão dos fatos e das datas de sua trajetória.
Em uma dessas andanças, Ulisses foi retratado em Zero Hora como o gaúcho mais autêntico. Foi durante um rodeio, em 1974 (na foto acima).
Em 2018, Izaltina foi patrona dos Festejos Farroupilhas de Alegrete. Hoje, mora em Porto Alegre e, com a filha Léa, a neta Fernanda e a bisneta Letícia, frequenta o 35 CTG e mantém acesa a tradição não apenas do Estado, mas da família Soriano.
— Eu não esperava ganhar bisnetos e eles estarem criados, no meu costado, e seguindo a caminhada do tradicionalismo. Para mim, é o melhor caminho — conclui Izaltina.
Da procura de um ambiente familiar à presidência do MTG
Corria o ano de 1990 quando os recém-casados Manoelito e Odila Savaris foram morar em Caxias do Sul. Procuravam atividades que pudessem dividir com os filhos Thiago, Tomás e Alina, que tinham entre quatro e sete anos.
— Precisávamos de um lugar saudável para conviver com eles. O Manoelito era da Brigada Militar, então fomos para o CTG que é ligado à instituição. Ele foi patrão e eu passei a me envolver — recorda Odila, 62 anos.
Além da carreira como oficial, Manoelito cursava História e se interessava cada vez mais pelo estudo da tradição. Odila, por sua vez, desenvolveu apreço especial pela área cultural. Em mais de 30 anos de dedicação ao tradicionalismo, a família Savaris é uma das tantas que contribuem para o desenvolvimento da cultura do Estado. Tanto que ele foi presidente do MTG e publicou dois livros: Manual do Tradicionalismo Gaúcho e História e Identidade.
Os filhos também se tornaram lideranças. Thiago, 40 anos, é vice-patrão do CTG Campo dos Bugres, para o qual a família migrou após um convite para estruturar o departamento cultural e artístico. Ele e o irmão, Tomás, 39, foram capatazes em diferentes gestões da entidade e, junto com a irmã, Alina, 37, agora ensinam a terceira geração.
O neto caçula, Vicenzo, nasceu há cerca de três meses, na mesma noite em que o avô Manoelito partiu para junto do Patrão Velho. Como já sabendo do legado que carrega, recentemente foi visto pilchado, no colo do pai, Thiago, junto aos amigos do CTG.
— É uma caminhada bem significativa e ela nos honra. Hoje, olho para o lado e vejo homens e mulheres que são pais e mães de família, e que agradecem pela ajuda, pelo esforço e pelo exemplo — reflete Odila.
Ela deu sequência ao trabalho de uma vida e continua como secretária-geral do MTG. O próximo ato da família Savaris já está definido: Odila revela que, reculutando lembranças, encontrou os escritos que dariam origem ao terceiro livro do marido. Segundo ela, a parte histórica foi deixada pronta, então resolveu que vai concluir a obra com as questões culturais, pelas futuras gerações.
O projeto que reuniu a família
Nascido em Rio Grande, Cristiano Rodrigues, 43 anos, cresceu frequentando as casas dos avós em Cacequi e Bagé, onde teve contato com o campo, o cavalo e algumas rotinas inerentes ao gaúcho do Pampa. Quando a família mudou-se para Canoas, tinha oito anos e logo se viu em meio a um grupo de vizinhos, do bairro Cinco Colônias, que organizava eventos, cursos de dança e encontros para cultuar a tradição.
Conseguimos reerguer o CTG, com o trabalho de uma boa equipe, e hoje somos uma referência no Estado.
CRISTIANO RODRIGUES
Presidente do CTG Mata Nativa
Ali nascia, em 1992, o CTG Mata Nativa, com um galpão para abrigar as atividades que antes eram promovidas na sede da associação de moradores. No entanto, passados alguns anos, a entidade se viu em apuros. Sem um tablado para os bailes, o prédio já tinha a água e a luz cortadas e acumulava dívidas, devido a uma sequência de más gestões.
Sonho
Valdir Dorado Rodrigues, o pai, continuava a frequentar a cancha de bocha, ao lado do galpão, onde outras lideranças se reuniam para praticar o esporte. Ali surgiu a ideia de lançar uma candidatura que pudesse resgatar a entidade – e os presentes decidiram que Cristiano era o nome ideal, oferecendo-lhe suporte.
Com o pai na função de primeiro-tesoureiro, ele aceitou o convite. E foram eleitos, no dia 17 de dezembro de 2009. Dois dias depois, Valdir sofreu um infarto e não resistiu. Mas o sonho não acabaria ali.
— Trouxe toda a família e nos abraçamos. Mulher, mãe, sogra, todo mundo. Conseguimos reerguer o CTG, com o trabalho de uma boa equipe, e hoje somos uma referência no Estado — orgulha-se.
As lembranças mais remotas levam ao piá que aprendeu a jogar truco, a dançar nas invernadas artísticas e a praticar bocha com o pai. A cancha, aliás, leva o nome de Valdir, e o departamento hoje está a cargo do filho, que todas as quartas e sextas-feiras cuida para que os companheiros desfrutem de momentos de confraternização.
— É uma coisa muito presente na minha vida. Penso muito nele quando estou nas atividades do CTG. Meu pai trabalhava com elétrica e eu também trabalhei, por muitos anos. Outro dia, roubaram uns fios do galpão e fui arrumar, como ele já havia feito muitas vezes — lembra.