Quando o compromisso de dar tempo para a terra descansar, de olhar o solo com zelo e de priorizar o equilíbrio entre a agricultura e a natureza viraram premissa em áreas de produção no noroeste gaúcho, uma verdadeira revolução se colocou em curso na maneira de produzir no Rio Grande do Sul. O exemplo assertivo vindo de propriedade na região de Cruz Alta virou referência e hoje coloca na vitrine a oportunidade de o agronegócio ser parceiro da descarbonização e da redução das emissões.
Enquanto uma série de diretrizes públicas orientam o percurso, a mudança na prática começa em cada propriedade. Nas áreas do engenheiro agrônomo Maurício de Bortoli, o pioneirismo produtivo veio após uma grande frustração por estiagem, em 2006.
— Enfrentamos uma grande seca e vimos que manter aquele modelo de negócio não iria longe. O solo pedia socorro. Isso levou a uma mudança completa de sistema, melhorando os manejos e aumentando a rotação de culturas — conta o produtor.
A produção nos 12 mil hectares de área alterna cultivos de inverno e de verão com as plantas de cobertura. As espécies devolvem ao solo os nutrientes que mantêm a terra saudável para os próximos ciclos. Junto com o plantio direto, a técnica tira o melhor proveito possível da área e consolida um sistema produtivo altamente sustentável.
O resultado aparece em uma série de indicadores, sobretudo no de maior interesse dos agricultores, que é o rendimento da produção. As áreas tratadas em modelos sustentáveis produzem mais com menos, garantindo rentabilidade ao produtor. Ou seja, promovem uma atividade mais eficiente e mais rentável.
— A agricultura só vai conseguir conviver em harmonia com a sociedade e o ambiente se tiver essa visão sistêmica. Se utilizar o conservacionismo como principal ferramenta e trabalhar em cima das estratégias, das técnicas e das tecnologias. E falo isso com dados e pesquisa, porque é nisso que nos debruçamos nos últimos 15 anos. A produção que não enxergar essa vertente não vai conseguir se manter — alerta o produtor.
Quase 20 anos depois, a mudança de cultura tem inspirado outros produtores:
— O que eu faço é uma tecnologia muito simples que pode ser de qualquer propriedade. É só tomar a decisão de querer fazer. Não é uma agricultura aventureira. É uma estratégia de longo prazo — diz Bortoli.
Política pública como norte
Referência de cartilha para outros locais produtores, inclusive mundiais, o Plano ABC+ da Secretaria da Agricultura do RS (Seapi) organiza em forma de política pública uma série de diretrizes para a agropecuária local. Em uma frente de oito pilares fundamentais (veja abaixo), o programa auxilia para que produtores de pequeno, médio e grande porte implementem ações sustentáveis em suas produções.
Coordenador do comitê gestor do programa e pesquisador da Seapi, Jackson Brilhante comenta que, nos últimos anos, cada vez mais vem crescendo a integração entre lavoura e pecuária no Estado, pela diversificação econômica e sustentabilidade que garante.
No modelo integrado, que também pode combinar a implementação de florestas, enquanto uma parte da área é destinada à agricultura, outra parte fica dedicada à criação de animais. Segundo especialistas, a possibilidade de associar mais de um sistema confere sustentabilidade tanto econômica quanto ambiental aos locais.
A prática é uma das tecnologias listadas pelo Plano ABC+ e apresenta importantes resultados. São mais de 2,2 milhões de hectares com integração de sistemas de produção no RS, conforme dados oficiais mais recentes, de 2020. Os números, diz Brilhante, estão em processo de atualização, e já se acredita que sejam maiores.
— Somos o terceiro Estado com maior área de integração do país. E vemos um grande potencial de crescer nos próximos anos — contextualiza o pesquisador.
A adoção das diretrizes é vista como fundamental na reconstrução dos solos após as enchentes que devastaram áreas produtivas em diversas regiões do Estado. Na avaliação dos especialistas, as tecnologias de baixo carbono são oportunidade para reconstruir áreas do zero, já nos moldes de uma agricultura do futuro.
Também são oportunidade de fomento da indústria relacionada ao agro. Uma das apostas nesta linha é o crescente uso de grãos e cereais para gerar biocombustíveis. O processamento das matérias-primas para este fim impulsiona não só a atividade fabril, mas a agropecuária e a agricultura familiar. O segmento encontra grande filão na metade Norte, onde projetos já estruturados, como da gigante Be8, de Passo Fundo, encontram outras iniciativas e investimentos previstos para entrar em operação nos próximos anos.
— O objetivo do ABC+ é mitigar, adaptar e trazer maior resiliência e eficiência produtiva. Ou seja, é o produtor produzir mais, gastando menos e com menor impacto ambiental. Com isso, chegamos nos três eixos. No econômico, que é a possibilidade de aumentar a renda do produtor. No sequestro de mais carbono no solo, que é a questão ambiental. Alinhado tudo isso, o social vem por tabela — diz Brilhante.
Tecnologias de redução de emissões e adaptação, segundo o ABC+:
- Plantio direto
- Integração de lavoura, pecuária e sistemas agroflorestais
- Bioinsumos
- Florestas plantadas
- Manejo de resíduo animal a partir de biodigestores e biofertilizantes
- Sistemas irrigados
- Terminação intensiva na pecuária
- Recuperação de pastagens degradadas
Pecuária sustentável
Referência na criação de gado a pasto, o Rio Grande do Sul tem no seu modelo produtivo um dos maiores trunfos para enfrentar desafios quando o assunto é pecuária do presente e do futuro. A atividade é apontada como uma das vilãs da emissão de gases causadores de efeito estufa, mas trabalha para reverter essa imagem a partir da comunicação de dados que mostram o contrário.
Uma das iniciativas é o conceito de pecuária sustentável, focado no manejo com pastagens. Segundo estudos, a vegetação que alimenta os animais mais fixa do que elimina carbono para o ambiente, neutralizando as emissões. O Rio Grande do Sul é um dos Estados referência nesta prática, saindo à frente na produção animal.
Presidente da Mesa Brasileira da Pecuária Sustentável, organização que reúne atores de toda a cadeia produtiva, Ana Doralina Menezes diz que o RS tem muito a seu favor quando o assunto é produção sustentável, a começar pelo bioma que abriga, o Pampa.
— A pecuária gaúcha tem muito mais conhecimento do que regiões mais novas no segmento. A integração com o ambiente é um belo diferencial frente a outros mercados mais recentes. Muito do trabalho de melhoramento de campo nativo e de melhoramento de produção já foi feito — diz Ana Doralina.
Outra iniciativa apontada como tendência no mercado da carne é a redução no tempo de abate dos animais. Ao acelerar o processo, a terminação antecipada reduz a quantidade de emissões, conferindo resultado ambiental, maior giro para os pecuaristas e mais maciez aos cortes de carne.
A adoção das práticas acelera os compromissos frente às exigências do mercado global, que ameaça embargos aos locais que não cumprirem regras contra o desmatamento. Ainda que a medida tenha sido adiada para janeiro de 2026, o risco de suspensão das exportações brasileiras para União Europeia mantém a necessidade de adequação dos sistemas produtivos, mais voltados à sustentabilidade.
— Temos uma responsabilidade muito grande como maiores exportadores de carne bovina no mundo. Como o Brasil produz? Como somos vistos lá fora? A necessidade de evolução é proporcional à responsabilidade de produção que assumimos — diz a dirigente do Mesa Brasileira da Pecuária Sustentável.
Entender o que se faz nacionalmente é um primeiro passo, completa Ana Doralina:
— Outros países do mundo não têm o mesmo controle de preservação que nós temos. Tanto que nos últimos anos a nossa produtividade quase duplicou e a área reduziu. Ou seja, conservamos mais e ampliamos a produção. Se não formos sustentáveis, não temos continuidade.
Do campo para a indústria
Cooperativa de laticínios mais antiga em atividade no Brasil, a Santa Clara é ponta de lança também nos assuntos relacionados à sustentabilidade. Apostando em fontes de energia renovável e na logística reversa para os resíduos plásticos que utiliza, a companhia de Carlos Barbosa, na Serra, tem como missão reduzir em 30% a emissão de gases de efeito estufa até 2030.
Para isso, aportou investimentos de R$ 1 milhão em desenvolvimento sustentável nos últimos anos.
As iniciativas verdes estão em todas as frentes. Alexandre Guerra, diretor administrativo e financeiro da Cooperativa Santa Clara, relata que as ações de mitigação começam ainda no campo, com aposta em eficiência genética para a produção dos animais – quanto mais produzem, menos emitem. Depois, chegam à linha: 100% da energia comprada no mercado livre vem de fontes renováveis, além das 13 usinas fotovoltaicas construídas para atender a outros 18 negócios da cooperativa.
Por meio da logística reversa, a Santa Clara pretende retornar 30% das embalagens de queijo, leite e embutidos colocadas no mercado em 2024. Assim, parte do que é vendido retorna para a fábrica, reduzindo o impacto no ambiente e os custos da operação.
Frota híbrida, projetos para empilhadeiras elétricas nas indústrias, robotização da ordenha e até reciclagem de uniformes de colaboradores que se transformam em cobertores para doação completam a esteira da pauta ESG na cooperativa.
— Não é uma ação de pessoa jurídica, mas de aculturar as pessoas nos seus mundos sociais e de convivência para que se possa ter o somatório do esforço delas na mitigação dos efeitos no clima. O Brasil tem extremos dos dois lados e isso gera perdas para todo mundo. Queremos com essas ações aculturar as pessoas — diz Guerra.
Para atenuar o efeito das emissões, a cooperativa ainda investe em biodigestores nas unidades produtoras de suínos, utilizando os dejetos e o gás metano para gerar energia elétrica. É uma saída para reduzir o impacto da produção animal, inerente à atividade:
— O setor agropecuário tem papel fundamental e está correndo atrás. Existe a preocupação ambiental, mas bate também nos resultados econômicos. É uma saída inteligente porque reduz custos, torna competitivo e traz retorno ao consumidor e ao ambiente — completa o diretor da Santa Clara.