Se a enchente poupou a estrutura do centenário prédio da Casa do Peixe, em Arroio do Meio, as águas barrentas do Rio Taquari avançaram e destruíram as relíquias, coleções e memórias de três gerações da família que mantém o tradicional restaurante. Construído em 1907 para servir como moinho, o casarão está de pé desde antes da emancipação do município, em 1934. O que havia em seu interior, no entanto, foi devastado pela enxurrada do início de maio.
— De acordo com meu sogro, a enchente de 1941 alcançou 80cm dentro do restaurante — conta o proprietário da Casa do Peixe, Darcísio Schneider, conhecido na cidade como Picolé, para em seguida enumerar as cheias seguintes no local. — A de 1956 só lavou o chão. Em 2001, faltaram dois degraus para a água entrar. Em 2020, ela entrou, marcando 30cm. No ano passado foi pior: em setembro, marcamos 3m15cm dentro do salão, e, em novembro, 1m97cm. A de agora veio para derrubar mesmo, cobriu tudo.
Foi a primeira vez que as águas alcançaram o segundo pavimento — onde o filho de Darcísio, Rodrigo Schneider, 34 anos, museólogo por formação, guardava discos, pinturas, livros e, em especial, dois pianos. No dia 1º de maio, quando a tragédia começou, ele estava fora do Rio Grande do Sul e acompanhava a situação a distância.
— A primeira coisa que pensei foi nos pianos. O piano em que pega água, esse não tem volta, não tem mais o que fazer. Fui dormir naquela noite preparado para esse luto. Não é sofisma falar em pesadelo — diz Rodrigo.
Quando tinha 10 anos ele começou a se aventurar no mundo da música. Iniciou com órgão elétrico e gaita, até chegar ao piano. Um dos dois instrumentos agora inutilizados ele ganhou de presente. Era um piano centenário.
— Eu estudava em uma congregação alemã da Divina Providência, que era proprietária do instrumento. Quando decidiram se desfazer dele, viram que eu tinha interesse e me doaram. Falei em comprar, mas me deram de presente. Trouxe para cá e o reformamos — recorda, ao lado do piano totalmente destruído.
O luthier que o reformou trabalhou no projeto por três semanas. Veio de São Paulo e se hospedou na própria Casa do Peixe. Em uma cidade com a cultura da música, serviço não faltava para o homem, que retornava anualmente a Arroio do Meio para consertos e afinação.
Hoje, as cordas que antes ressoavam de Mozart a tango, passando pela MPB, agora só reproduzem um som confuso abafado pelo barro. Lamentando a destruição, Rodrigo compara o desmonte dos pianos destruídos a uma necropsia:
— Domingo (26/5) eu deixei o dia para mim. Vim para cá, sozinho, começar a desmontá-los para ver o fim que vou dar neles. Foi uma sensação ainda pior, porque estamos lidando com um morto. Estamos na autópsia. Vamos abrindo, e ele vai se desfazendo. É como um ser sem vida. Vai se desmanchando, vão saindo as partes, solta o marfim da tecla, soltam os componentes, o feltro não existe, começa a mofar. É muito forte.
Emocionado, Darcísio mostra a gaita da família — que só Rodrigo sabe tocar. E recorda como o piano foi importante para a formação do filho.
— Lembro desde quando ele era criança. Esse aqui foi o primeiro piano que a gente comprou para ele — mostra o outro instrumento. — (Rodrigo) Começou com aqueles órgãos elétricos. Sempre se interessou por música, pela gaita, depois caiu no piano. Conseguimos comprar. Tudo foi conseguido com muito sacrifício.
Acervo também tinha arte e discos de vinil
Desde 1954, a Casa do Peixe está de portas abertas para o público. Darcísio recorda que o local começou como uma espécie de bodega, que, pela proximidade do rio, "sempre servia um peixinho frito". Anos depois, com a chegada de um frigorífico nas proximidades, o local se transformou em uma churrascaria – com peixe no cardápio. Com o fechamento do frigorífico, o local voltou a operar apenas como Casa do Peixe.
Junto ao casarão histórico, Darcísio montou a casa onde vive e onde as relíquias familiares eram guardadas. Entre elas, um quadro do pintor Glauco Rodrigues de 1976 e diversos discos de vinil. A família pretende recuperar o que foi possível desse material.
Na esquina das Ruas Campos Salles com a Visconde do Rio Branco e de frente para o Rio Taquari, o casarão ainda possuía um pátio e vista verde para todos os lados. Agora, as ruínas e o barro compõem o cenário, que praticamente não tem mais árvores.
Com muito do passado guardado agora apenas na memória, Darcísio começa a pensar em escrever uma nova história. Quer reabrir a Casa do Peixe e já tem até data para isso.
— Vai ser no dia 20 de setembro — afirma, apontando para a bandeira do Rio Grande do Sul hasteada na janela, uma imagem que repercutiu nas redes sociais nas últimas semanas.