Com a RS-287 retalhada por bloqueios em razão de estragos causados pela força da água sobre a rodovia, o restaurante de dona Ivani Zanatta Severgnini, 49 anos, em Candelária, no Vale do Rio Pardo, enfrenta queda de 80% no movimento. Estacionamento com grande oferta de vagas e mesas vazias marcam o ambiente, hoje praticamente isolado no coração do Estado. Parte do município está no meio de dois bloqueios da rodovia, que dificultam a ligação com cidades vizinhas e avanço para a Região Metropolitana. A história de Ivani é uma das tantas bagunçadas pela mudança no mapa rodoviário do Estado, provocada pelo avanço dos rios sobre as estradas gaúchas entre o fim de abril e início de maio.
Queda de pontes, erosão no asfalto e pedaços de pistas levadas por enxurradas estão entre os principais danos provocados nas rodovias pelo aguaceiro que castiga o Estado nas últimas semanas. A reportagem de GZH não conseguiu dado centralizado sobre o total da malha rodoviária comprometida pela enchente no Estado. No entanto, balanço do banco de dados da inundação na região hidrográfica do Lago Guaíba, desenvolvido por cientistas da UFRGS e voluntários dá uma noção do estrago. A pesquisa aponta que pelo menos 2,7 mil quilômetros de estradas e vias foram diretamente afetadas pela inundação no Estado. O dado leva em conta dados geográficos espaciais e de imagens de satélite que mostram a mancha de inundação sobre o solo gaúcho. Esse levantamento considera rodovias pavimentadas, vias vicinais e estradas de chão batido.
O número pode parecer pequeno diante da imensidão da malha rodoviária estadual, mas corredores importantes para escoamento da produção e abastecimento de cidades, como BR-386, BR-290, BR-116 e RS-287, foram interrompidos por pontos de destruição de pista.
A professora da Engenharia Civil da Escola Politécnica da Unisinos Danielle Clerman afirma que existem dois desafios para a reconstrução de estradas severamente danificadas pela inundação no Estado. Além do encharcamento do solo, em alguns locais, a pista foi arrancada pela força da água. Isso dificulta a análise da base da estrutura das rodovias. Como esse evento climático tem características únicas e inéditas e ainda está em andamento, ela estima que a recuperação total dos pavimentos deve demorar:
— É necessário uma investigação técnica, tecnológica para tentar entender o que que tem ali embaixo, como que ficou aquela estrutura. Só uma estrutura íntegra vai ser capaz de se manter operante, absorver as cargas e, principalmente, oferecer segurança aos usuários da via.
O foco no escoamento e drenagem deve aumentar, principalmente em rodovias cercadas por rios e arroios, como é o caso da RS-287, segundo a especialista.
RS-287 recortada
Levando em conta extensão e número de municípios afetados, uma das situações mais precárias é observada na RS-287, principal ligação entre o centro do Estado e a Região Metropolitana. Dentro dos 204,5 quilômetros da rodovia administrada pela Rota de Santa Maria, ainda existem quatro pontos de bloqueio total, que criam uma colcha de retalhos nos acessos de municípios da Região Central, Quarta Colônia e Vale do Rio Pardo.
O tempo de viagem entre Porto Alegre e Santa Maria subiu de cerca de quatro horas para até seis horas via BR-290, que virou a principal rota alternativa para ligar o Centro do Estado e Região Metropolitana. A maior parte da BR-290 nesse caminho é marcada por tráfego tranquilo. Apenas o trecho de Eldorado do Sul apresenta asfalto danificado e remendado em razão da força da chuva.
No entanto, municípios no miolo da RS-287 enfrentam problemas maiores de circulação. A reportagem de GZH cruzou a RS-287 de Santa Maria até Venâncio Aires, no Vale do Rio Pardo, em 22 de maio. O trajeto que costumava ser traçado em cerca de duas horas e meia levou cerca de cinco horas. O trecho conta com três pontes caídas ou com problemas estruturais em Santa Maria, Paraíso do Sul e Candelária. Esses pontos viraram canteiros de obra para religar parcialmente esse corredor importante para escoamento da produção do Estado.
Diante dessas interrupções e na espera dos acessos que estão em obras, motoristas se arriscam em desvios informais precários em trechos rurais, marcados por lama, cascalho e atoleiros, que lembram um labirinto em busca do pavimento da RS-287. Serviços de GPS parecem não ter entendido a dimensão no mapa rodoviário da região. Indicam caminhos interrompidos ou de difícil acesso. Nesse momento, quem precisa cruzar a rodovia recorre ao bate-papo com moradores para descobrir acessos e desvios locais, que mudam de acordo com as condições climáticas, que alteram o terreno diante do grande tráfego de veículos pesados. Um desvio que é usado hoje pode estar inacessível para veículos de passeio no dia seguinte em caso de chuva ou grande movimento.
Entre Restinga Seca e Candelária, a RS-287 apresenta pontos fantasmas, com baixo movimento, comércio local vazio e praças de pedágio com cancelas levantadas.
O prefeito de Jaguari e presidente da Associação dos Municípios da Região Central do Estado (AMCentro), Roberto Carlos Boff Turchiello, afirma que o problema de ligação da região com o restante do Estado afeta a economia dos municípios. Empresas enfrentam problemas para transportar produtos e adquirir itens básicos para produção. Além disso, a diminuição de circulação em algumas cidades também estrangula a arrecadação, segundo Turchiello:
— Eu não sei como é que nós vamos enfrentar o final de ano, o comprometimento da responsabilidade fiscal. Os municípios estão ficando com a despesa das enchentes e a diminuição da receita.
Destruição em Venâncio Aires
Logo após passar a região central de Venâncio Aires, a pista da RS-287 em direção Porto Alegre começa a dar sinais do que está por vir. Faltam nacos de asfalto nas beiradas da rodovia. A degradação do asfalto dá a impressão de que algum objeto pesado caiu sobre o chão, arrancando pedaços inteiros e redondos das bochechas do pavimento.
A partir do quilômetro 60, na região do distrito de Mariante, o cenário de destruição dá as caras. Partes inteiras da RS-287 foram levadas pela água diante da cheia do Rio Taquari. Em um trecho de cerca de um quilômetro, pelo menos três crateras foram formadas na rodovia, com aspecto que lembram grandes explosões no solo, como se um bombardeio tivesse atingido a área.
Esse é o fim da linha para quem tenta ir da região para Porto Alegre via RS-287. Moradores indicam desvio por dentro do sistrito de Mariante, mas o trajeto é cercado por incertezas em razão do solo encharcado e obras na região.
Porta-voz de um grupo de empresários da região de Venâncio Aires, Charles Fengler afirma que a interdição de parte da RS-287 causa angústia e preocupação. Com a ligação viária interrompida, empresas enfrentam problemas para escoar produção, comprar insumos para processos industriais e alimentos para animais. Isso afeta diversos ramos de comércio, indústria e serviços, como os de tabaco e proteína animal.
— Algumas empresas, inclusive, podem parar, ter um colapso nos próximos dias, de necessidade de parada total da produção por falta de insumos. Então, essa situação aí de rodovias está se tornando uma situação que pode parar em vários setores — pontua.
Comércio e serviços locais afetados
Além da logística com o restante do Estado, o retalho da RS-287 também afeta a rotina e o trabalho de moradores dos municípios costurados pela rodovia. Citada no início da reportagem, Ivani mantém o restaurante Lago Azul às margens da RS-287 há 20 anos. O estabelecimento fica a menos de um quilômetro da ponte sobre o Rio Pardo, com parte da estrutura caída, e cerca de 30 quilômetros depois da ponte sobre o Arroio Barriga, em Paraíso do Sul, que também não aguentou a força da água. Com o local praticamente apartado do restante da região, a empresária viu o número de clientes desabar nas últimas semanas:
— Sempre passava de cem almoços por dia e hoje nós estamos servindo 15, no máximo 20 almoços.
Por volta das 12h da última quarta-feira (22), apenas três das 31 mesas no espaço estavam ocupadas, longe do movimento habitual, com locais disputados na hora do almoço. Com resistência e disposição tradicionais de empreendedores, Ivani afirma que essa é uma fase que vai passar assim que a ligação for retomada e o fluxo voltar a aumentar na região.
Morando bem próximo à ponte sobre o Rio Pardo, em Candelária, o pedreiro Tiago André Marion, 39 anos, viu o principal acesso para sua residência ser desmanchado pela força da água do rio, que aumentou seu leito enquanto transbordava em partes da região. Com isso, ele improvisa uma vaga de garagem para sua Saveiro branca no acostamento da RS-287 pouco antes do bloqueio. Dali, desce a pé por uma baixada íngreme e escorregadia para andar a pé até a casa, que não chegou a ser alcançada pela enchente.
— A gente pousa aqui. E o carro fica aqui quando a gente tá em casa de dia. De noite, eu deixo ali no posto pra ter um pouco mais de segurança.
Eduardo Beck, 27 anos, trabalha como entregador de gás em Cachoeira do Sul. Antes do bloqueio da RS-287 que cria um espaço praticamente isolado entre Paraíso do Sul e Candelária, ele chegava em algumas localidades em 20 minutos. Agora, esse tempo triplicou, segundo o trabalhador. Além disso, afirma que as más condições dos desvios internos de terra de chão batido acabam deixando o trajeto mais inseguro. Com mais gente usando essas rotas vicinais para fugir dos bloqueios, a estrada fica mais remexida e com buracos, segundo Beck:
— Tem um buraco ali, até onde eu fiquei atolado quatro horas. Um trator tracionado não conseguiu tirar o caminhão, precisamos de uma retroescavadeira.
Recuperação
A Rota de Santa Maria informou que trabalha para liberar a RS-287 totalmente em junho por meio de desvios provisórios. A informação foi reforçada pelo governador Eduardo Leite no início da semana em comunicado à imprensa:
— A concessionária está em campo desde o início para restabelecer as conexões da RS-287. Nós estamos controlando e acompanhando cada uma das intervenções para que, na primeira semana de junho, tenhamos a rodovia liberada integralmente.