Por Maíra Brum Rieck
Psicanalista, idealizadora e coordenadora do Museu das Memórias (In)Possíveis
Nilce Azevedo Cardoso era uma mulher preocupada com as injustiças do mundo. Queria conhecer a pobreza extrema, entender o que se passava com aqueles considerados restos da sociedade. Não acreditava em violência, acreditava em educação. Foi com essa premissa que, na época da ditadura civil-militar, abandonou seu nome de registro, sua família e seus amigos e entrou para a clandestinidade. Queria lutar contra o regime com ideias, e não com violência. Como trabalhadora de fábricas, conheceu a fome, a miséria no próprio corpo. Seu intuito era educar os trabalhadores brasileiros a entenderem que sua condição social não era uma fatalidade, mas uma política de Estado. Ensinar que essa condição poderia e deveria ser transformada. Sua arma, a educação.
Foi sequestrada em uma parada de ônibus por militares e torturada durante quase seis meses diariamente. Carlos Brilhante Ustra assistiu algumas dessas sessões. Foi estuprada e torturada até entrar em coma. Quando acordou, pediu uma gilete. Os médicos responsáveis acharam que ia se matar. Mas Nilce queria se depilar. Queria se sentir bonita novamente. Queria viver.
Saiu da prisão clandestina. Voltou para o mundo. Mas não conseguia conciliar o que lhe acontecera pelas mãos de agentes públicos com o mundo “real”. Ela me contou que enquanto era torturada só pensava:
– Isso não pode estar acontecendo! Uma pessoa não pode fazer isso com outra!
Uma dor que pode ter lhe doído tanto quanto o que lhe faziam no corpo. Teve amnésia ao sair da prisão. Para continuar vivendo, Nilce por um momento teve que esquecer. Esquecer, não: apagar.
A psicanálise sabe que o apagamento produz o retorno do trauma em ato. É uma ilusão que algo traumático possa ficar no passado. Pode voltar em pesadelos, repetições, angústia, sintomas.
Nilce, corajosa como era, entendeu que para viver não poderia esquecer, precisava lembrar. Retomou sua história, lembrou e nos ensinou que, mesmo quando se conhece a pior face do humano, é preciso lembrar. Lembrar muito para que se inscreva na cultura o que aconteceu não somente com ela, mas com muitos. Lembrar que os crimes perpetrados pelos militares durante a ditadura não foram cometidos contra terroristas. Lembrar que todos os que pensavam diferente dos militares eram aniquilados, e isso era uma política, não uma exceção. Nilce tornou-se pedagoga. Iria continuar ensinando. Nas sessões de tortura, os militares queimaram seu útero “para que não pudesse ter filhos”. Nilce resistiu a tal ato de ódio e conseguiu ter filhos mesmo contra as estatísticas. Participou do projeto Clínicas do Testemunho, onde a conheci. Escutá-la era um ato de resistência. Beirava o impossível. Mas, se ela viveu tais atrocidades, o mínimo que poderíamos fazer era escutá-la. E, hoje, transmito parte de sua história a quem conseguiu chegar até aqui.
Nilce morreu em 2022, ainda tentando corrigir no corpo o que lhe infligiram nas torturas. Morreu no mesmo ano que seu principal torturador, Pedro Seelig. Este morreu sem julgamento, e Nilce ficou sem justiça. Todos perdemos.
“Deixa o passado para trás”, “Isso ficou no passado”, “Eu olho só para a frente.” Essas são frases corriqueiras da nossa cultura que nos dizem de uma pressa insana de apagar nossa história e uma sede por um futuro imaginário que parece nunca chegar. Mas, em tempos em que o passado mais cruento ameaça virar futuro, nos lembramos de que a linearidade temporal não é necessariamente uma linha reta. Esquecer o passado serve apenas a quem tem interesse em apagá-lo. Vimos recentemente, no 8 de janeiro de 2023, o passado ameaçar retornar em mais um golpe de Estado no Brasil, que já sofreu tanto/tantos.
Aqueles que viveram violências pelas mãos do Estado não têm a opção de esquecer, deixar para trás, mesmo quando o querem. Apesar de há muito tempo sabermos que houve uma ditadura civil-militar brasileira, por não ter havido julgamentos e responsabilização dos perpetradores dos crimes cometidos pelo Estado, as vítimas seguem sangrando pelo abandono e falta de inscrição na cultura. Filhas e netas de torturadores seguem recebendo pensões absurdas sem precisar trabalhar. Pensão-torturador; pensão-estuprador; pensão-assassino. Quais os efeitos psíquicos de construir uma vida a partir de um dinheiro feito de sangue?
Neste ano de 2024, o Museu das Memórias (In)Possíveis, museu fundado na ética da psicanálise que tem o compromisso de questionar a forma como os humanos fazem laço com o outro, está com uma série de eventos para descomemorar o golpe civil-militar de 1964, que completa 60 anos. Serão eventos-testemunhos. Começaremos com o testemunho de Amélia Telles e seguiremos com estudiosos, artistas. Serão atividades abertas, gratuitas e online, mediante inscrição. Ocorrerão todas as primeiras segundas-feiras de cada mês, às 21h.
Também lançaremos no museu uma mostra da ditadura civil-militar, em que estaremos abertos para a construção de testemunhos dessa época. Sabemos que não é fácil fazer um testemunho como esse, por isso respeitamos os tempos de cada um, sem pressa. Nilce, pouco antes de falecer, deixou para o Museu das Memórias (In)Possíveis seu testemunho. Morreu antes de vê-lo no museu. Em homenagem a ela, não deixaremos que a esqueçam ou que esqueçam a sua história.
Saiba mais
O Museu das Memórias (In)Possíveis é uma iniciativa do Instituto Appoa, vinculado à Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa). Nesta segunda-feira (4/3), às 21h, promove o primeiro de vários eventos mensais online sobre a memória do golpe civil-militar de 1964, que em 2024 completa 60 anos. O encontro, que é gratuito, mas tem inscrição pelo e-mail appoa@appoa.org.br, trará o testemunho de Amélia Telles, que foi torturada pelos agentes do regime. Neste primeiro evento, também haverá o lançamento, no site, de outros testemunhos da ditadura, entre os quais o de Nilce Cardoso, deixado antes de sua morte, ocorrida em 2022. Nos próximo meses, outros testemunhos serão apresentados, em encontros sempre na primeira segunda-feira do mês. O museu pode ser visitado em museu.appoa.org.br/site.