Por Maíra Brum Rieck e Edson Luiz André de Souza
Psicanalistas, coordenadores do Museu das Memórias (In)Possíveis do Instituto da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa)
“Toma o ventre da terra
e planta no pedaço que te cabe
esta raiz enxertada de epitáfios”
Conceição Lima
As memórias são como raízes que nos fixam aos lugares, nos ajudam a compreender de onde viemos mas também acionam os desejos de mudanças. São tecidos de linguagem que herdamos, palavra a palavra, e nos dão o estofo de que precisamos para adentrar o mundo e construir novos percursos. A memória aciona os faróis da história, abrindo espaço para futuros que não sejam meras repetições do vivido.
O Brasil carece de memoriais que possam acolher, registrar, transmitir as narrativas de todos os que foram esquecidos, violentados, excluídos e cujos traumas ainda como espectros à deriva, buscando um lugar de pouso. Nosso país jamais será um país do futuro, como propôs Stefan Zweig, se não acionar as memórias traumáticas que circulam na corrente sanguínea de nossa história. Vivemos hoje um cenário de destruição não só pela pandemia do coronavírus, mas por todas as violências que enfrentamos: povos indígenas desalojados, população negra sob ameaça – fruto do racismo estrutural que ainda precisamos enfrentar –, florestas destruídas, militarização da política nacional reavivando o período traumático da ditadura civil-militar e ameaçando tantas conquistas democráticas.
O Museu das Memórias (In)Possíveis do Instituto da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa) é um museu virtual que surge no desejo de recolher algumas dessas narrativas traumáticas para que saibamos mais sobre as histórias que nos constituem mas que permanecem subterrâneas. A psicanálise tem o compromisso de estar atenta à escuta do seu tempo. Sabemos que os dilemas de uma época reverberam no sofrimento psíquico que cada sujeito experimenta. A proposta é que o museu cumpra também uma função de intervenção, à medida que o registro dessas narrativas permita que essas vozes sejam reconhecidas e assim ganhem força, legitimidade e, sobretudo, acionem desejos de mudança, que possam tirar tais vidas das sombras em que vivem.
Giorgio Agamben propõe que “contemporâneo é (...) aquele que sabe ver a obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente. (...) Pode dizer-se contemporâneo apenas quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a parte da sombra, a sua íntima obscuridade”. Mas quem vive nas sombras do nosso tempo? O que têm a dizer? Por que são calados, amordaçados? O que contam os que não contam?
No Museu das Memórias (In)Possíveis os contamos um a um, no duplo sentido da expressão. Os contamos em suas singularidades e escutamos o que têm a contar. Moradores de rua, pobres, torturados das ditaduras, sobreviventes de guerras, os ditos loucos, os diferentes, os que não se encaixam, os vencidos. O que eles contam de todos nós? Qual a nossa responsabilidade frente aos que não encontram ouvidos para seus gritos?
Um anel de madeira manufaturado em Auschwitz; um áudio de uma menina de 14 anos com medo de morrer na rua; as fotos excepcionais de Luiz Eduardo Achutti da primeira experiência de reciclagem do país, na Vila Dique, em Porto Alegre; os testemunhos da remoção forçada dos ribeirinhos no Pará devido à construção da hidrelétrica de Belo Monte; mais de mil sonhos da pandemia no projeto Inventários dos Sonhos. Objetos que ultrapassam seu valor de objeto para contar a história da humanidade, objetos que ultrapassam seus donos originais e passam a narrar a história incessante de violação de direitos humanos e que estarão no acervo do museu.
O (In)Possível com “N” não é por acaso, já que o termo “impossível” (com M) não diz tudo o que gostaríamos de transmitir. Então inventamos outra palavra, que não existe no dicionário e introduz a ideia moebiana de possível e impossível ao mesmo tempo. Quando substituímos o M pelo N, introduzimos nesse binário possível-impossível o (in)consciente, o (in)dizível. Com isso, tentamos enfatizar não o que está em plena luz do dia do nosso tempo, mas as sombras ao redor.
O Museu das Memórias (In)Possíveis estará aberto a todos. É um lugar de acolhimento e resistência. Apostamos que abrir arquivos é processo civilizatório, como lembra Célio Borges. Precisamos de muito passado para construir futuros.
Lançamento
O Museu das Memórias (In)Possíveis será lançado às 10h de sábado, dia 22, em via plataforma Sympla. As inscrições são gratuitas. Saiba mais em appoa.org.br.