Por Robson de Freitas Pereira
Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa)
"Sustentar uma coluna com espaço psi, durante todo este tempo, é alguma coisa.” Ele nos disse enquanto almoçávamos num boteco na Paulista. Tínhamos combinado nos encontrar para colocar os assuntos em dia. Aquela conversa quando a gente encontra um amigo que não vê há tempos e sai falando livremente. Um dos temas surgidos: “E a Appoa?”.
A reminiscência foi em São Paulo, onde ele já residia há muitos anos. Mas, neste momento, quando sentimos a dolorosa constatação de que sua presença física está perdida, a memória retorna ao início de nossa história comum: a Associação Psicanalítica de Porto Alegre.
Na metade dos anos 1980, Contardo começou a vir ao Brasil. Fazia clínica e seminários na capital gaúcha e em São Paulo. Naquele momento, estávamos organizados em algumas instituições ou estudando reunidos em torno de um psicanalista.
Em 1989, após fixar residência aqui, nos apresentou a proposta da associação. A concepção era diferente de tudo o que já se tinha vivido ou pensado. Criar uma instituição que privilegiasse a circulação transferencial, que tivesse uma relação vital com a cidade e se constituísse a partir da dissolução das instituições e dos grupos de estudos existentes. Teríamos de perder algo, abrir mão do já instituído para apostar em algo novo.
Contardo soube conduzir o processo, ajudando a superar rivalidades, invejas e desconfianças, mostrando que era uma tentativa de contribuir real e inovadoramente à psicanálise. A resposta dos psicanalistas, fossem jovens ou mais experientes, foi de entusiasmo. As pessoas pareciam compartilhar do desejo de seguir sua formação sem precisar de mestres eternos ou de organização burocrática.
O fato de haver uma diretriz de circulação transferencial não diminuiu a exigência de estudo e rigor conceitual. Os conhecimentos se diversificaram: além dos estudos de Freud e Lacan, fomos apresentados a bases antropológicas, históricas, filosóficas, matemáticas, linguísticas e culturais. Contardo marcava a importância de nossa língua e nossa cultura como fatores fundamentais para a escuta de um psicanalista. Parafraseando o filósofo: tudo o que é brasileiro nos interessa, não pode nos ser indiferente. Isso foi uma das marcas em nossa trajetória.
Com o tempo, começou a ter efeitos na maneira como os psicanalistas eram vistos pelos meios de comunicação e mesmo os membros de outras instituições começaram a se interrogar sobre suas formas de institucionalização e estudo. A escuta rompeu as paredes dos consultórios, dos lugares tradicionais de atendimento, e foi para as ruas.
Contardo esteve no centro de tudo isso, nos ajudando a sustentar um discurso psicanalítico, sem precisar segregar as pessoas porque não tinham a mesma trajetória ou transferências. Ele que incialmente chegou a Porto Alegre como um lacaniano; tinha participado da Escola Freudiana de Paris até sua dissolução, no sul do Brasil encontrou pessoas com quem pôde constituir uma proposta de trabalho inovadora, que rompeu também com as instituições lacanianas tradicionais.
As análises conduzidas, onde leveza não era sinônimo de indiferença (um dia comentou que estava preocupado com um paciente que se arriscava demais); as supervisões (tomei como uma interpretação do fim de minhas supervisões regulares; o dia em que ele disse que não me cobraria mais porque aquela era uma conversa entre colegas); os seminários cheios de referências intelectuais, mas também interessado nas contribuições dos jovens; tudo isso deixou marcas. Mais ainda, conseguiu transmitir em ato a responsabilidade de reinventar a psicanálise a cada paciente/momento.
A capacidade de Contardo de fazer com que o medo do novo, do desconhecido possa ser enfrentado e transformado em propostas surpreendentes, sabendo que sempre contamos com os outros, segue vigente para fazermos uma vida interessante.
Anos após deixar a presidência da Appoa, Contardo mudou-se para os EUA, depois para São Paulo. Ali, seguiu sua aventura de deixar o pensamento Psi (nome da série de TV que criou e dirigiu) navegar por outros mares: teatro, livros de ensaios, novelas, reportagens especiais e a coluna na Folha de S.Paulo mencionada no início deste texto. Consolidou sua posição intelectual e psicanalítica. Agora faz sua derradeira travessia. Que a poesia, a música, o cinema e nosso amor lhe sirvam de guias. Boa viagem, querido.