Por Maíra Brum Rieck
Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa)
“É muito forte o que tenho que dizer. Mas é a minha verdade. Fui presa junto com minha mãe. Não aguentei ver ela apanhando dos homens que nos levaram para o Doi-Codi no Recife. Fui torturada. Levei choque. Machucaram meu olho. Sofri muito. Minha dor é ver como podem fazer isso com as pessoas que não sabem nem o que estão fazendo. Depois me deixaram dentro de um saco infecto de cebola, um saco de estopa. Sem roupa, sangrando, na praça do Derby, em Recife. Fiquei com um casal que me ajudou a recuperar. E minha mãe nunca mais eu vi”, Iracema desabafa, durante conversa num apartamento no bairro de Pinheiros, em São Paulo. (Eduardo Reina, em “Cativeiro Sem Fim – As Histórias dos Bebês, Crianças e Adolescentes Sequestrados pela Ditadura Militar no Brasil” – Alameda Editorial, 2019, p. 199.
Os testemunhos dos vencidos vêm nos contar que a memória oficial de um país é forjada sobre bases de apagamentos, mentiras, corpos, violências. Cresci ouvindo que a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) havia sido branda, a tal da ditabranda, que não havia sido tão violenta quanto as dos nossos vizinhos latinos. Cresci sendo colega de escola de uma neta do ditador Emílio Garrastazu Médici e vendo os meus colegas se divertirem – com ares sádicos – com a reação de susto que era propositalmente provocado por eles nos professores de História quando lhes contavam esse fato. Estávamos nos anos 1990, e a ditadura supostamente havia terminado.
Foi somente anos mais tarde que fui entender realmente do que se tratava. Escutei, enquanto psicanalista do projeto Clínicas do Testemunho, inúmeras pessoas afetadas pela ditadura e já sabia que de branda não tinha sido nada. Mas foi o encontro com o livro de Eduardo Reina, Cativeiro Sem Fim, que me fez ver/sentir o tamanho do buraco de memória que o Brasil se encontrava e ainda se encontra.
Nesse livro, Reina comprova o sequestro de 19 bebês, crianças e adolescentes durante a ditadura civil-militar brasileira. Os relatos são aterradores e de uma violência chocante. Era da cartilha militar sequestrar os filhos de ativistas para serem criados pela sua ideologia. Torturas, estupros, abusos de todas as ordens: é o que os militares efetivamente faziam com essas crianças, salvo exceções. Salvo exceções que não salvam nada, uma vez que eram casos de sequestros.
O Museu das Memórias (In)Possíveis do Instituto Appoa, da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, lançou, na última segunda-feira (18/9), uma exposição virtual realizada a partir desse livro. Esse museu, que é fundado na ética da psicanálise, busca inscrever as histórias dos vencidos, as histórias subterrâneas, do nosso espaço público. Busca escutar o que essas pessoas têm a dizer e o quanto seus discursos questionam as amarras dos nossos laços. Não fossem os testemunhos dos vencidos, até hoje não saberíamos dos crimes cometidos pelos nazistas na Segunda Guerra e outros genocídios.
Mais do que denunciar, o livro de Reina nos traz questionamentos importantes: se demoramos até 2019 para ter provas de sequestros de crianças no Brasil, a ideia de ditadura branda não seria só uma mentira, mas, mais do que isso, uma inversão de realidade? Explico: se demoramos tanto tempo para descobrir, não seria porque foi mais sanguinária a ponto de apagar os rastros dos crimes? Como nos diz o autor, o sequestro de bebês é matar a própria morte.
Ele nos conta que nos demais países da América Latina que passaram por ditaduras são os pais e avós que procuram os filhos e netos. No Brasil, é o contrário: são os filhos que buscam os pais.
Em uma lógica que nenhum médico ou neurologista poderia explicar, em uma “intuição” (ou inconsciente) uma pessoa descobre que não veio daquela família que a cria. Não consegue explicar o porquê, só sabe. Até aqui, poderia se tratar de uma história comum de adoção. Mas não é uma adoção. As pessoas que as criam, nesse caso, são as mesmas que mataram/torturaram seus pais biológicos ou são cúmplices de quem os fez.
Hoje vivo na angústia de não saber quem eu sou, quantos anos eu tenho e sequer saber quem foram ou quem são os meus pais. Saber onde se encontra a minha verdadeira família. Todos se negam terminantemente a falar sobre esse assunto. Só desejo saber quem sou, e onde está a minha família. Acredito que esse direito eu tenho, depois de sofrer tantos anos, tantas humilhações. Hoje eu só sei que sou um ser humano que nada sabe sobre seus pais. Que jamais poderei sentir o colo da minha mãe e o carinho do meu pai. Eu desejo só a Justiça; saber a minha verdade... O que me fere é que de repente fiquei sem nada. Sem família de mentira e sem ter o direito de saber qual é a minha verdadeira família. Sempre me tiraram tudo, e desde 2013 me tiraram até o que eu pensava que fosse. (Rosângela, em "Cativeiro sem Fim", p. 210)
Rosângela foi sequestrada ainda bebê pelo “faz tudo” de Ernesto Geisel. Enquanto criança, a mãe sequestradora a dopava no contraturno escolar constantemente para não ter de se ocupar dela.
Aos 13 anos (supostamente, porque não se sabe a idade de Rosângela) foi prostituída a um pedófilo 40 anos mais velho. A família sequestradora ficava com o dinheiro da prostituição da menina. Foi obrigada a se casar quando supostamente fez 18 anos e a permanecer nessa relação abusiva, de constantes estupros, torturas, humilhações e sadismos até a mãe sequestradora estar no leito de morte e a libertar do compromisso. Morta, a “mãe” não precisaria mais do “salário” mensal do marido de Rosângela.
Mas de volta ao começo… Quem será a minha colega de escola neta do Médici? Nunca a conheci realmente. Será que acredita na legitimidade dos crimes perpetrados pelo avô? Acha que tinha que matar, torturar, estuprar, roubar crianças, mesmo? Será que acha que não tem nada a ver com isso, que já passou? Ou será que faz parte das filhas e filhos corajosos dos ditadores/torturadores que querem se afastar desses crimes? Não se afastar pelo esquecimento – que sempre retorna – mas pela memória. Terá ela tido a coragem de enfrentar os demônios mais terríveis?
É preciso muita memória para produzir esquecimento. É preciso muita memória para não transmitir os horrores de quem os viveu aos filhos e netos. E isso se aplica ao campo “individual” e ao coletivo. Enquanto esses crimes não forem inscritos como verdade, cairemos sempre na lógica da repetição e, mais que isso, condenaremos essas pessoas ao Cativeiro Sem Fim.