Por Robson Barenho
Jornalista e letrista, autor dos versos de “Romance Campesino”
Os festivais gauchescos de música nasceram e se desenvolveram, nos anos 1970 e 80, sob vigência de censura prévia instituída e exercida pela ditadura. Era um de seus instrumentos de opressão e de repressão.
Em 29 de agosto de 1983, uma ligação telefônica de Talo Pereyra, de Porto Alegre, me encontrou em Brasília.
– Problema, parceiro. A censura vetou Romance Campesino porque a música fala em “tesão”.
– Mas tesão é cantada em rádio, TV e cinema há, no mínimo, três anos.
– Sim, é uma das coisas que nosso advogado vai alegar na Justiça.
– Já temos advogado, então.
– É o Júlio, irmão do Paulo Gaiger.
Combinamos denunciar à imprensa o veto da censura e tornar pública essa nossa reação. Juarez Fonseca, em Zero Hora, e José Barrionuevo, no Correio do Povo, publicaram notas sobre o caso. Começava a disputa registrada na 5ª Vara da Justiça Federal como o caso 5459982 – Raul Eduardo Pereyra versus Chefe da Censura Federal.
Raul Eduardo Pereyra era o Talo Pereyra, um dos vencedores da 5ª Ciranda da Canção, realizada em Taquara, no Vale do Paranhana, em 1982, com versos de Gaspar Machado e interpretação de Paulo Gaiger. Talo inscreveu Romance Campesino, parceria nossa, para a 6ª edição, no ano seguinte. A música passou, com outras 41, tendo sido escolhida para abrir a primeira de três eliminatórias, marcada para 1º de setembro de 1983.
Em 17 de agosto, a Ciranda enviou as letras à censura. Por 10 dias não houve manifestação dos censores. Mas no domingo, dia 28, veio o aviso de que a letra de Romance Campesino estava vetada. O problema era uma palavra do terceiro verso:
Ano inteiro a mesma cena
de currais, jardins, paióis;
a tesão por Madalena,
atenção pra os girassóis (...)
Na véspera do início do festival, o bacharel Júlio Marcos Germany Gaiger impetrou, na 5ª Vara da Justiça Federal, o Mandado de Segurança nº 5459982. Pediu que fosse cassada a decisão do chefe do Serviço de Censura no Estado, João Bispo da Hora, e a música fosse liberada. E requereu que, antes, a Justiça concedesse liminar autorizando a execução da canção apenas na Ciranda.
Júlio Gaiger alegou que o chefe da censura extrapolou os limites de suas funções legais, feriu o direito constitucional dos autores à liberdade de expressão e se baseou, possivelmente, num decreto-lei de 1946, entendendo que a palavra tesão constituiria ofensa ao decoro público. “Ocorre que hoje em dia, em nenhuma hipótese, se pode pretender que a palavra ‘tesão’ constitua ofensa ao decoro público (...).” O juiz Luiz Furquim acatou o pedido e concedeu liminar, garantindo Romance Campesino no festival.
A censura explicou ao juiz o veto à palavra em questão: “Em suma: neste Estado, o vocábulo, da maneira como é expresso no poema, repugna”. Na avaliação dos censores, “o vocábulo, que foi empregado na acepção de ‘desejo carnal’, é de linguajar chulo”. Eles afirmaram ainda que “a repulsa é de parte da sociedade”.
O chefe do Serviço de Censura aludiu a discussões para mudar a letra da canção. Essa fantasia apareceu também em ofício do comando da Ciranda enviado a Júlio Gaiger. Três dirigentes fixaram prazo até 30 de setembro para a liberação da letra, sob pena de deixarem a canção fora do LP do festival por força dos prazos do contrato assinado com a gravadora.
“O assunto seria facilmente solucionado”, escreveram, “caso os ilustres autores de Romance Campesino concordassem em trocar a expressão ‘tesão’ por outra de sentido análogo, como ‘obsessão’ etc., o que, em nosso entender, não deslustraria em nada a composição”.
Na vida real, o procurador Amir Finocchiaro Sarti emitiu o parecer de que a palavra, “bem inserida numa letra inteligente, dá bem a ideia do que os compositores quiseram transmitir: desejo carnal”. No relatório que antecedeu a sentença, o juiz Luiz Furquim assinalou que o procurador “não atina qual outro termo caberia melhor no contexto, que o agrada e absolutamente não o choca. Não vê mal algum em usar-se de uma palavra que expressa uma manifestação natural do ser humano”.
Furquim liberou Romance Campesino definitivamente em 30 de setembro: “No contexto, no todo do poema, não se vislumbra um arranjo literário que tenha por resultado ofensa objetiva do decoro público. Julgo procedente a ação e concedo a segurança”.
No palco da Ciranda, a canção conquistara aplausos. Levou os prêmios de 3º lugar no festival, melhor conjunto instrumental e melhor arranjo. Está gravada no LP do festival pelos artistas que a defenderam: o intérprete Paulo Gaiger e os músicos Talo Pereyra (violão), Chaloy Jara (bandoneon), Carlos Martau (bandolim) e Derli (clarinete). E, no ano 2000, foi incluída pelo intérprete Léo Almeida em seu álbum Parceiros.