Por Abrão Slavutzky
Psicanalista, autor, entre outros, de “Imaginar o Amanhã” (Diadorim, 2021)
Existem livros sobre os desaparecidos, mas talvez O Congresso dos Desaparecidos, o livro recém-lançado de Bernardo Kucinski, seja o primeiro em que eles contam suas histórias. Na Antígona de Sófocles o Rei Creonte não permite o enterro do irmão de Antígona, mas essa o enterra, mesmo sabendo que seu ato levaria à condenação à morte. Muitas ditaduras fizeram desaparecer suas vítimas, porém, as artes rememoram seus crimes hediondos, os artistas buscam resgatá-los. Um rei assassinado fala como fantasma no início de Hamlet, e em Incidente em Antares, de Erico Verissimo, os mortos saem dos túmulos para reviver. Agora, os desaparecidos ganham vozes. Além do que, os mortos são nossos visitantes noturnos nos sonhos. No inconsciente, os mortos estão vivos.
O Congresso dos Desaparecidos tem como narrador Japa, que um dia, vagando perdido por São Paulo, chega à Praça da República. Senta-se numa mureta e pensa num distante passado, “quando a revolução era o destino e derrotar um exército, mudar o mundo, tudo parecia possível. Que ingenuidade! Que ilusão! Foi quando um homem me olhou fixamente, disse ‘Japa!’, me estendeu a mão, nos abraçamos, e eu disse: ‘Rodrigues!’”. Ambos haviam desaparecido há 40 anos e agora, ali, estavam juntos. Na conversa, Japa sugere um congresso dos desaparecidos. Rodrigues, após muito pensar, responde: “Que ideia poderosa, essa, do congresso. Os espectros assombrando os vivos”.
No meio da leitura, comecei a recordar os argentinos desaparecidos, como a colega psicanalista Marta Brea. Ela foi sequestrada em plena luz do dia em uma policlínica de Lanús onde fiz a residência de Psicopatologia. Atualmente, há um parque em Buenos Aires, próximo ao Aeroparque, o Parque da Memória, em homenagem aos desaparecidos políticos. O lema do parque é: No desaparece quien deja huellas (“Não desaparece quem deixa marcas”).
Voltei ao livro quando Rodrigues, um dos desaparecidos, disse ao Japa: “Não se completou o rito social das nossas mortes. Nós não perdemos só a vida, perdemos o direito a um túmulo. Você sabia que o direito de um túmulo está consagrado na nossa Constituição?”. Então lembraram, emocionados, do desfile da Mangueira, com samba-enredo que afirmava: “São cruzes sem nomes, sem corpos, sem datas, memórias de um tempo onde lutar por seu direito é um defeito que mata”.
Na longa conversa na praça, os espectros concluíram: “Mas a revolução era uma utopia! Não é por acreditarmos na revolução que ela se torna possível”. Há um entusiasmo dos desaparecidos durante o congresso. Muitos falaram, e imaginei a presença do gaúcho Ico Lisboa, irmão do músico Nei Lisboa e primeiro desaparecido da ditadura militar brasileira encontrado no cemitério de Perus (SP). O congresso teve mais de 200 presentes e muitos falaram sobre como foram torturados e mortos, mas também abordaram os ideais de justiça social. Ao final, decidiramm marchar para Brasília em defesa de seus direitos.
O livro está escrito num estilo emocionante, como imagino a vida de Kucinski, que ingressou aos 12 anos no Dror, um movimento sionista socialista. Sua vida acelerou ali. Aos 21, foi morar num kibutz, uma coletividade agrícola em Israel, e depois retornou ao Brasil para cuidar de sua mãe doente. Estudou Física, depois Jornalismo, foi professor da USP, dirigiu revistas na luta pela democracia e foi assessor de imprensa no primeiro governo Lula.
Kucinski escreve sobre os desaparecidos políticos desde o livro K – Relatos de uma Busca (Cia. das Letras, 2016). O pai do escritor é quem busca pela filha, Ana Rosa Kucinski, professora de Química na USP, sequestrada e morta pela ditadura, figurando como desaparecida (sua ossada foi encontrada na Usina Cambahyba, RJ). K já é um clássico, um livro de várias edições e traduções. Toda arte é um trabalho de memória.
A memória dos mortos é preservada nos rituais funerários, como revela a Ilíada de Homero, o primeiro poema do Ocidente. Nela, Aquiles luta e mata o príncipe Heitor e arrasta seu cadáver diante de Troia. O rei Príamo implora para Aquiles o defunto de seu filho para enterrá-lo; o herói grego aceita e nesse gesto se humaniza. Nesse sentido, o novo livro de Kucinski, que dá vozes aos desaparecidos, segue o caminho da humanização diante da pior das barbáries. Dar vozes aos desaparecidos é um dos caminhos para enfrentar os traumas de nossa História. A ditadura impediu que os jovens torturados, alguns esquartejados, fossem entregues aos familiares para serem enterrados.
O Congresso dos Desaparecidos integra a luta da memória contra o esquecimento. Quem deixa marcas não desaparece.