Por Maíra Brum Rieck
Psicanalista, uma das coordenadoras do Museu das Memórias (In)Possíveis
Quem escreve a nossa história? Quais são os olhares que nos constituem? Quais afetos vêm com esses olhares? Quais as palavras? Quem diz o que somos? O que nos destrói? O que nos restitui a dignidade?
Nos anos 1990, o fotógrafo/antropólogo Luiz Eduardo Robinson Achutti fotografou a primeira recicladora de lixo do Brasil, que teve lugar na Vila Dique, em Porto Alegre. Uma experiência pioneira na cidade e no país. Naquela época, a população ainda não tinha o costume de reciclar, e o lixo que ali chegava era relativamente pouco. Tudo ocorria em um único galpão, com pouco mais de uma dezena de trabalhadoras, que se sentiam muito satisfeitas com o seu salário. Ganhavam um salário mínimo e gostavam de colecionar os tesouros que ali encontravam.
Achutti encontrou um grupo majoritariamente de mulheres, quase todas da mesma família. Desconfiadas à princípio, disseram que não queriam ser fotografadas por jornalistas, que geralmente as retratavam com um olhar estereotipado. Achutti garantiu que o seu olhar não seria esse. E assim o fez. Com um olhar dignificador, essas fotografias se transformaram na sua dissertação de mestrado intitulada Fotoetnografia: um Estudo de Antropologia Visual sobre o Cotidiano, Lixo e Trabalho.
Aquela não era a época dos celulares com câmera nem das fotografias digitais. As fotos eram um artigo de luxo, e os álbuns de família acabavam sendo muito caros para serem produzidos. Achutti as presenteava com as fotos que tirava; e delas tirava novas fotos, com as fotos presenteadas em mãos. Eram fotos dentro das fotos, dentro das fotos... Elas procuravam no galpão de reciclagem molduras vazias e colocavam seus retratos nas paredes do galpão ou em suas casas. Algumas chegaram a fazer álbuns com suas fotos.
Em 2019, o Museu das Memórias (In)Possíveis entrou em contato com Achutti para fazer uma exposição com o seu trabalho na Vila Dique. Ainda não sabíamos bem como seria essa exposição, já que este Museu se propõe a ser um museu-intervenção, um museu fundado na ética da psicanálise. O Museu das Memórias (In)Possíveis se propõe a problematizar e a transformar o espaço público, questionando a forma como estabelecemos nosso laço social – sempre tão problemático, excludente e destruidor das diferenças.
Achutti chegou até o museu com suas fotos, negativos, livros e histórias. Sempre muito receptivo, generoso. Tivemos meses de conversas sem saber onde tudo aquilo ia dar. Até que, um dia, Achutti nos conta que uma moça, na casa dos 20 anos, havia lhe escrito quatro anos antes dizendo que ele tinha a sua história. A moça era Diênnifer, jovem que havia sido fotografada com um ano de idade por Achutti no colo da mãe, na Vila Dique. Diênnifer queria um exemplar da dissertação de mestrado de Achutti, que para ela era um álbum de família. Seus avós, tios, pais estavam todos ali, retratados naquele livro/álbum.
Foi com o Museu das Memórias (In)Possíveis que Achutti retornou à Vila Dique, agora em outra localização, e pôde entregar à Diênnifer seu “álbum de família”. Nesse encontro, Achutti levou consigo fotos de todos que havia fotografado nos anos 1990 para presenteá-los e fazer novas fotos dentro das fotos. Esse encontro deu origem a um minidocumentário realizado por Pedro Isaias Lucas e à exposição virtual Quando um Livro se Torna Álbum de Família, que será lançada no dia 20, sábado que vem, pela plataforma Sympla, dentro do projeto do Museu das Memórias (In)Possíveis. Além da exposição, estará disponível para consulta todo o acervo da Coleção Achutti-Vila Dique no site do museu. São, no total, 233 fotos do fotoetnógrafo capturadas nos anos 1990 e também no reencontro que ele teve com a Vila Dique, em 2019.
O projeto
- O Museu das Memórias (In)Possíveis é uma iniciativa do Instituro Appoa, ligado à Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Saiba mais em museu.appoa.org.br/site.
- A exposição Quando um Livro se Torna Álbum de Família, promovida pelo museu, será lançada às 11h do próximo sábado (dia 20), em videoconferência na plataforma Sympla. O link pode ser acessado no site do museu.
- Também integra o projeto um minidocumentário dirigido por Pedro Isaias Lucas. Outras informações podem ser obtidas no mesmo site.