Esta reportagem foi produzida por Gabriela Sardi Jarzynski, aluna de Jornalismo na UFRGS e uma das cinco vencedoras da edição 2023 do projeto Primeira Pauta RBS
— Temos que nos esforçar duas vezes mais do que qualquer brasileiro — garante Ancelot Desir Le Grand, 30 anos.
Estudante de Direito, o haitiano faz parte de um grupo de 50 refugiados entre os cerca de 30 mil alunos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), segundo dados da Pró-Reitoria de Graduação. Em dezembro, este número deve aumentar, com novo processo seletivo.
Ancelot chegou ao Brasil em 2016 com o intuito de estudar. A mãe, Orianie, não via futuro para o filho na terra natal, ainda assolada pelos efeitos do terremoto de 2010, que destruiu a capital Porto Príncipe e matou mais de 300 mil pessoas.
— Inclusive, não esqueço do dia em que cheguei no Brasil: 12 de janeiro de 2016, exatamente seis anos depois do terremoto — diz.
Em terras brasileiras, tentou ingressar no Instituto Federal de Santa Catarina, mas não passou. Então, atravessou mais uma fronteira até o Chile. Com o “portunhol” na ponta da língua e um objetivo em mente, procurou vaga numa universidade pública. Mas o diploma de Ensino Médio não era aceito em lugar algum. Para não ter de retornar ao colégio, já que “imigrante não pode perder tempo”, deixou de lado o plano da advocacia. Lavava caminhões para se sustentar. Após dois anos, decidiu tentar novamente a sorte no Brasil.
Passou um tempo em Chapecó (SC) estudando História na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), enquanto trabalhava na linha de produção de uma indústria alimentícia. Pouco depois, soube do edital da UFRGS para ingresso de pessoas em situação de refúgio nos cursos de graduação. Ancelot escreveu uma carta de intenção, fez uma entrevista e foi aprovado em Direito, reavivando o sonho de um dia ser advogado.
Havia um entrave: a matrícula só seria efetivada após a apresentação do CELPE-Bras, um certificado de proficiência em português entregue a estrangeiros que obtêm bom desempenho numa prova desenvolvida pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep). Se Ancelot não fosse aprovado no exame, perderia a vaga na universidade. Não foi o caso. Conseguiu o certificado e efetivou a matrícula: a vaga era sua. Em breve, o haitiano concluirá a graduação.
— Vou seguir, porque meu sonho, desde o colégio, é ser advogado. Então eu vou tentar, lutar para terminar esse curso.
Oportunidade
A partir desta segunda-feira (4), outros refugiados poderão ingressar na UFRGS. O edital contempla 112 vagas em 33 cursos de graduação para pessoas que tenham obtido a regularização de sua situação no Brasil por razões humanitárias (confira abaixo como participar).
A política foi instituída na universidade em 2018, a partir de esforços da Cátedra Sérgio Vieira de Mello, projeto implementado na UFRGS em parceria com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur).
Os desafios
Na visão de Ancelot, o maior desafio de um estudante refugiado por aqui é aprender a língua portuguesa. Nascido no Haiti, nação com dois idiomas oficiais, cresceu falando criolo e um pouco de francês.
— Às vezes a gente passa uma aula inteira sem entender nada — confidencia.
Do mesmo país, Jenny Ylerat também penou com o português ao chegar no Brasil, aos 22 anos. Agora, aos 28, mais fluente no idioma, afirma serem dois os problemas que persistem: o frio, especialmente o do Sul, e o racismo estrutural.
— Trabalho em uma clínica de fisioterapia, e é como se “ah, tu não deveria trabalhar aqui, teu lugar é na limpeza”. Quando digo para uma pessoa que estou estudando, é como se fosse uma grande coisa, eu, imigrante, negra, vir aqui no Brasil estudar enquanto tem branco que não está estudando — relata.
Na reta final da graduação em Saúde Coletiva, orgulha-se de sua trajetória:
— Foi um desafio e uma conquista ao mesmo tempo, porque nós, imigrantes, não temos só nós. Temos família, pai e mãe para ajudar. Também tem a questão da saudade.
Os familiares de Jenny pretendem imigrar para o Brasil, mas o alto custo da viagem impede o reencontro.
A primeira formada
Brice Gaelfie N’gouaka Bouaha, 25 anos, nascida em Brazzaville, no Congo, foi a primeira aluna a se formar no edital para refugiados da UFRGS. Em junho deste ano, concluiu a graduação em Saúde Coletiva. Como reconhecimento ao empenho pelos estudos, além do capelo (o famoso chapéu de formatura) recebeu uma láurea acadêmica.
— Me sinto muito orgulhosa de mim, devido a tudo que eu carrego sendo mulher, imigrante, negra, não falante da língua portuguesa. Cheguei aqui e não falava nada. Então chegar, entrar na faculdade, se graduar como primeira (selecionada pelo edital para refugiados) e tirar a láurea acadêmica é muito, muito, muito excepcional — comemora.
Na terra natal, Gaelfie chegou a cursar três meses de Física na Universidade Marien Ngouabi. Assim que o pai, por recomendação de um amigo, sugeriu a vinda dela para o Brasil, não hesitou em abandonar a graduação.
— Não pensei duas vezes e falei “ok, eu vou”. Nem pesquisei sobre o Brasil. Eu fui saber qual era a língua daqui na embaixada, inclusive. Fui embora porque sempre quis estudar fora. E também porque minha universidade não tinha uma estrutura adequada, tem bastante greve, em uma semana você tem aula, na outra não.
Após a conclusão da graduação, neste ano, ainda ingressou no mestrado em Educação. Gaelfie considera que saúde e educação devem andar lado a lado. Cita como exemplo o sistema de ensino primário do Congo, onde desde a puberdade os estudantes aprendem sobre educação sexual — o que, acredita, acaba por diminuir os índices de gravidez na adolescência. É essa política de ensino que ela importaria do Congo para o Brasil.
Também sente falta da comida, principalmente do pondu, prato típico feito a partir de folhas de mandioca. Além da culinária, Gaelfie convive com a saudade da família — os pais e três irmãos moram no Congo, enquanto uma irmã reside no Paraná. Apesar disso, garante que nunca se sentiu desamparada.
— Durante meu tempo aqui, construí uma rede de apoio muito sólida. Criei amizades muito lindas, que apoiam meus sonhos. Tenho uma família aqui com as diferentes amizades que criei. Nesse sentido eu tenho uma experiência muito boa mesmo — diz, sorrindo.
Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), apenas 3% dos refugiados têm acesso ao Ensino Superior, enquanto o índice global é de 37%. A congolesa espera pela equiparação desses índices, ansiando para que, um dia, seu caso não seja mais raridade.
Novos horizontes
Coordenadora da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM/UFRGS), a professora Pâmela Marques celebra a política de ingresso para refugiados. Entende que isso indica um avanço no entendimento das especificidades deste grupo.
— Ao receber um refugiado, o Brasil se compromete, junto à Agência das Nações Unidas para Refugiados, a conceder a ele as possibilidades de estudar, trabalhar, se desenvolver, viver uma vida digna no país. O vestibular especial vem obedecer a esse entendimento, de que é necessário dar condições pertinentes à situação desse estudante, para que ele ingresse em uma universidade pública — afirma.
Ainda assim, a política de ingresso precisa ser aprimorada, ressalta a professora. Pâmela considera que há aspectos a serem modificados, como a exigência do certificado de proficiência em língua portuguesa para efetivação da matrícula e a não oferta de vagas na maioria dos cursos de graduação.
— Quando a gente consegue resolver essas questões básicas, esses estudantes voam, brilham.
O vice-pró-reitor de Graduação da UFRGS, Leandro Raizer, considera que a medida enriquece a vivência universitária, já que proporciona trocas culturais entre pessoas de diferentes países.
— Temos buscado ano a ano aumentar essas vagas. É uma política institucional que veio para ficar — garante.
Johana Geneste, 22 anos, é uma das refugiadas que vai tentar ingressar na UFRGS por meio do novo processo seletivo. A jovem, que saiu do Haiti em meio à crise política desencadeada pelo assassinato do presidente Jovenel Moïse, deseja cursar Relações Internacionais e tornar-se diplomata. Para ela, será uma forma de contribuir com seu país de origem.
— Quero ser uma daquelas mulheres poderosas da política — almeja.
Como participar do processo seletivo
- As inscrições devem ser realizadas presencialmente na Divisão de Vida Acadêmica da UFRGS, Prédio Anexo I da Reitoria, no Campus Centro (Av. Paulo Gama, nº 110) do dia 4 ao dia 8 de dezembro de 2023.
- O candidato deve apresentar, no momento da inscrição: documento de identificação, que pode ser a Carteira de Registro Nacional Migratório (CRNM) ou Documento de identidade de estrangeiro (RNE); documento que comprove ser pessoa em situação de refúgio; documento comprobatório de conclusão de Ensino Médio; e carta de intenção que apresente justificativas para a candidatura no curso pretendido.
- O edital solicita ainda o Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros (CELPE-Bras) ou declaração do candidato se comprometendo a apresentar o documento, caso aprovado.
- Cursos disponíveis e demais informações podem ser acessadas pelo edital.
- O resultado do processo seletivo será publicado no dia 22 de dezembro no site da Pró-Reitoria de Graduação da UFRGS
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