Em menos de três meses, duas enchentes históricas devastaram o Vale do Taquari. Em Arroio do Meio, aproximadamente 900 famílias foram atingidas pela cheia registrada desde a última sexta-feira (17).
Uma delas é a de Bianca Luciana Gonçalves, 42 anos, que perdeu quase tudo o que tinha dentro de casa. Ela mora com o marido e a filha de oito anos no bairro São José, a poucos metros do Rio Taquari. No entendimento dela, as perdas registradas nas duas ocasiões se devem à falta de assistência da prefeitura.
— O bueiro aqui na frente encheu d’água, e a gente ficou com medo. Um amigo nosso, que estava aqui em casa, perguntou: “Vocês vão querer sair?”. Eu disse: “Não. Vou ligar pra Defesa Civil, eles podem dar uma palavra certa pra gente” — relata.
A reportagem de GZH teve acesso a trocas de mensagens entre a moradora e o poder público municipal na ocasião. Eram quase 21h30min da sexta-feira (17) quando Bianca entrou em contato com um dos dois coordenadores da Defesa Civil de Arroio do Meio em busca de informações. Ela queria saber detalhes sobre as condições do tempo.
Após duas ligações malsucedidas para um dos coordenadores, Cristian Perin, que estava de férias, recebeu o contato de outro coordenador do órgão municipal, Valdecir Crescêncio. Ela questionou se haveria risco de inundação. O gestor respondeu por meio de uma mensagem de áudio incompleta, enviada via WhatsApp.
— Boa noite, persistindo essa situação, não tem previ... — diz Crescêncio, quando a mensagem chega ao fim abruptamente.
Bianca continua a conversa dizendo que já havia perdido tudo na enchente anterior, em setembro, e implora para que, caso o cenário mudasse, a comunidade fosse avisada a tempo. O coordenador respondeu apenas com um “sim”.
O dia da enchente
Por volta das 7h de sábado (18), o Rio Taquari já estava a aproximadamente 50 metros de distância da casa da família. Bianca ligou para Valdecir Crescêncio. O coordenador da Defesa Civil passou um número de telefone para que a família chamasse o caminhão que retiraria os móveis de dentro de casa. A moradora destacou que as ligações para aquele número só caíam na caixa postal, mas foi incentivada pelo gestor a seguir insistindo.
— Continua tentando aí que vai dar certo. Vai forçando a ligação. Eles têm o contato do caminhão. Não adianta eu tentar que vai dar errado, tá? — responde o gestor.
— Eu não sei o que vai dar. Eu tô tentando, tentando, tentando e não vem ninguém. A água já tá chegando na casa de baixo. Nós botamos as coisas na parte de cima, mas estamos com medo de vir pra cima a água. Mas tá bom, eu vou tentar de novo — conforma-se Bianca.
Mais de seis horas depois, no início da tarde, a mulher volta a mandar mensagem para o gestor público, mas, desta vez, em texto, diz: “Ninguém socorre ninguém, meu Deus, perdi tudo por negligência. Eu pedi socorro e ninguém tava podendo fazer nada”.
À reportagem, Bianca desabafa:
— O que nós levamos sábado de manhã foi só tapa na cara. Quando ligava para o telefone do caminhão, dava ocupado. Quando conseguimos contato com a prefeitura, a água já estava dentro (de casa).
Se o alerta de inundação tivesse chegado com mais antecedência, o marido de Bianca, Leandro de Jesus Silva, 30 anos, acredita que a família não teria precisado da ajuda de ninguém, pois eles mesmos dariam conta de salvar a tempo o que tinham.
— Ninguém apareceu aqui para ajudar com nada. Se tivessem avisado na sexta-feira, a gente teria tirado tudo aqui — afirma Silva, natural do Maranhão e morador do Vale do Taquari há dois anos.
"Fomos avisados de uma enchente de pequenas proporções. Eu não me preocupei", diz morador
Vizinho do casal, Volmir Girelli tem passado os últimos dias envolvido na limpeza da sua casa, coberta de lama deixada pela cheia do Taquari. O prejuízo acumulado, após as duas inundações, chega a quase R$ 20 mil, estima Girelli.
Questionado pela reportagem se os moradores do bairro São José foram avisados da possibilidade de serem atingidos pela cheia, ele responde que não.
— Fomos avisados de uma enchente de pequenas proporções. Eu não me preocupei, porque, para invadir aqui, precisa chegar a uns 27 metros. Aí, foi mudando, foi mudando — conta.
Em outra localidade, o relato é semelhante. Antonin Nunes Machado mora no bairro Navegantes. Mal havia se recuperado dos estragos de setembro, quando gastou em torno de R$ 25 mil para recuperar as perdas, e teve a residência atingida novamente pela água.
— Sexta-feira, eram aquelas trovoadas e chuva de balde, né? Devia ser umas 19h, 20h, quando o prefeito de Arroio do Meio e o Valdecir, da Defesa Civil, botaram um vídeo ali (no Facebook) de que chegaria a uns 26 metros, talvez um pouquinho mais, mas não ia nem interditar as ruas. Aí, ficamos acomodados, porque não ia chegar aqui. E o que aconteceu? Chegou acima do forro da minha casa — descreve Machado.
Girelli e Machado se referem a um aviso feito pela prefeitura de Arroio do Meio e publicado em redes sociais. O prefeito Danilo José Bruxel aparece ao lado de Valdecir Crescêncio na margem do Rio Taquari, para repassar informações sobre a evolução das chuvas na região. O vídeo foi publicado às 17h07min de sexta-feira (17), na véspera da inundação.
De acordo com o coordenador da Defesa Civil, a projeção, naquele momento, era do nível do afluente alcançar os 26m, havendo uma "pequena cheia, o que não chega a desalojar nenhuma pessoa e que talvez não tranque nenhuma rua da cidade". Valdecir chega a frisar que, se as condições mudassem nas próximas horas, a população seria avisada.
Prefeito diz que tentou evitar descrédito
A GZH, o prefeito Danilo Bruxel argumentou que tentou evitar alarmismo, para que a prefeitura não caísse em descrédito por parte da população caso não se confirmasse uma grande enchente.
— Tem que haver um cuidado para não cair no descrédito. No momento em que tu diz que vai ter uma enchente grande e não acontece, e fala depois para se prepararem para mais uma enchente, na terceira vez, as pessoas desacreditam — justifica Bruxel.
Questionado sobre a possibilidade de parte das comunidades atingidas terem se desmobilizado justamente pelo tom ameno e tranquilizador do primeiro vídeo, o prefeito admitiu a possibilidade de falha na comunicação, mas disse que o município jamais deixou de auxiliar as famílias:
— Na sexta, durante o dia, não tinha essa previsão. Claro, a gente pode até falhar, mas o que a gente sempre procura fazer é estar próximo às pessoas. Tanto é que nesse bairro (São José), um dos primeiros a serem atingidos, a gente vem aqui, fala para as pessoas, orienta as pessoas.
Um dos responsáveis pela Defesa Civil do município, Valdecir Crescêncio reafirma que, no momento em que o comunicado foi feito no perfil oficial da prefeitura, o cenário indicava uma "pequena cheia":
— Mas, durante o período, foram evoluindo as projeções. Naquele período da sexta, as chuvas eram torrenciais só no município de Arroio do Meio, e no final de semana, no sábado, as chuvas se tornaram torrenciais na região alta. Aliado a isso, houve o rompimento de uma barragem, que influenciou significativamente a cheia do Taquari.
O coordenador explica ainda que, na tarde de sábado (18), um novo vídeo foi postado conclamando as pessoas atingidas pela enchente de setembro a deixarem suas casas o mais rápido possível. Só que a publicação foi feita às 13h18min, quando muitas casas já estavam debaixo d'água.
Moradores ouvidos na localidade, no entanto, reclamam que o poder público não esteve presencialmente no bairro para informar sobre o risco de inundação ou fazer a retirada das pessoas. De acordo com a Defesa Civil de Arroio do Meio, 14 caminhões compõem a frota de auxílio à população.
Alertas emitidos pela Defesa Civil do RS
O departamento de Comunicação da Defesa Civil estadual informou que, ao longo da semana passada, o órgão vinha conversando com as prefeituras. O diálogo, no entanto, teria se intensificado na sexta-feira à noite, quando a chuva aumentou consideravelmente em volume.
No site da instituição, é possível identificar os avisos emitidos e que abrangiam a região do Vale do Taquari:
- 17h28min de sexta (17): alerta para chuva e ventos intensos, descargas elétricas e eventual queda de granizo;
- 17h42min de sexta: alerta para alagamentos, cheias em arroios, inundações gradativas em rios, risco de enxurradas e deslizamentos.
- 6h51min de sábado (18): alerta para rápida inundação do rio Taquari, rio em rápida elevação a partir de Santa Tereza.
Precisão das previsões
Doutor em Recursos Hídricos e membro do Instituto de Pesquisas Hídricas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Fernando Mainardi Fan foi consultado por GZH sobre a possibilidade de alertar com antecedência a ocorrência de enchentes.
— Os recursos, tanto físicos quanto humanos, que temos disponíveis hoje não são suficientes para previsões mais precisas. E eles são, atualmente, o resultado de quanto valorizamos nossa proteção contra cheias nas últimas décadas. Se tivéssemos valorizado mais isso enquanto sociedade, poderíamos ter mais capacidade de previsão e teríamos conseguido prever tanto o evento de setembro quanto o de novembro com antecedência e exatidão maior, certamente — responde.
De acordo com o especialista, para que isso se torne realidade, é necessária a realização de investimentos de origem federal, estadual e até municipal. Entre os exemplos citados por Fan de aplicação de recursos que poderiam colaborar com o trabalho realizado pelos órgãos de monitoramento estão:
- um pluviômetro automático em cada um dos municípios da bacia dos rios Taquari-Antas transmitindo dados. Isso permitiria o cálculo da transformação de chuva em vazão e nível dos rios antes dessa água da chuva virar vazão propriamente;
- mais estrutura para o monitoramento automático dos níveis dos rios, com uma redundância para leitura e transmissão analógica em situações de cheia quando as transmissões falham;
- mapeamentos de áreas inundadas por município em função das cotas, de modo a poder relacionar facilmente os resultados de previsões com áreas a serem atingidas;
- e treinamento e ampliação das estruturas da Defesa Civil.