Em duas barracas unidas por uma lona doada, sete membros da família Ribeiro se amontoavam para dormir mais uma noite à margem da BR-290, na Ilha das Flores, em Porto Alegre. Os demais familiares, que moram em sete casas lado a lado na Rua do Pescador — todas inundadas —, se dividiam em dois carros e em outra barraca improvisada sobre um sofá.
Em uma noite de céu nublado, a única iluminação artificial vinha dos faróis dos veículos que passavam pela rodovia e pelo giroflex de duas viaturas da Brigada Militar e da Guarda Municipal de prontidão no local. A autônoma Bruna Ribeiro chegou a comprar um "lampião a bateria", mas a carga precisava ser poupada para saídas do abrigo, como nas idas ao banheiro e deslocamentos entre as barracas. O motivo: evitar animais peçonhentos.
— Aqui tem muita cobra, nós ontem vimos três. Também pegamos dois escorpiões que já estavam dentro da barraca — contou Bruna, que mostrou os aracnídeos dentro de uma garrafa PET.
O escorpião preto, diferente do amarelo, não possui veneno, mas a picada é dolorida.
Por conta dos animais, uma das doações mais comemoradas ao longo do dia foi uma carga de pallets que chegou de caminhão na tarde de quarta-feira (22). Com a estrutura de madeira, os acampados conseguiram erguer as barracas e evitar o contato com o chão, onde os animais rastejam com mais facilidade.
Mas dos bichos que voam os moradores não tinham muita escapatória. Em uma área alagadiça e no calor, era só ligar alguma fonte de luz que uma nuvem de mosquitos aparecia.
— Estão nos doando bastante comida, mantimentos. Mas repelente agora seria muito bom, porque os mosquitos atacam a noite toda — disse a dona de casa Michele Ribeiro, irmã de Bruna.
Se a noite apresenta seus desafios, também é o momento que os acampados aproveitam de maior "privacidade". Além da família Ribeiro, cerca de outros 50 moradores se agrupam neste mesmo local. Dessa forma, a escuridão é aliada no banho de canequinha.
— Não vou chamar de banho, vou dizer que a gente se lava, porque é muito calor durante o dia. Quem tem alguém vai até Porto Alegre pra tomar banho mesmo — explicou Michele, que se refere ao outro lado da ponte do Guaíba como Porto Alegre, apesar de as ilhas pertencerem à Capital.
Além do banho, as idas ao banheiro se tornaram um desafio. Em cada núcleo de acampamentos, um banheiro químico foi disponibilizado pela prefeitura. A regra acordada entre os próprios acampados é de que as mulheres têm prioridade no uso do sanitário.
Alimentação
Era por volta das 21h30min de quarta-feira (22) quando uma camionete ingressou no acampamento. Na caçamba, fardos de água e 200 marmitas preparadas por um grupo de amigos de Eldorado do Sul, que passaram de ilha em ilha oferecendo janta. Na das Flores, os moradores recusaram.
— Deixa pra próxima que eles precisam mais. Aqui a gente tá bem — disseram.
Por morarem na parte mais próxima da rodovia, alguns residentes da Ilha das Flores conseguiram resgatar boa parte dos eletrodomésticos. Assim, com as cestas básicas recebidas de doação, muitos cozinham ali mesmo.
— O pessoal tá sendo bem consciente, quem conseguiu marmita tá falando "entrega mais pra frente" que lá eles não receberam. A gente começou a ajudar aqui e vamos voltando até Eldorado — contou o autônomo Jonathan Costa, que integra o grupo de voluntários.
À luz de velas
Na entrada da Ilha da Pintada, um caminhão estacionado se destacava entre carros e barracas que serviam de abrigo para outras famílias. Dentro do baú, seis pessoas de duas famílias estavam à luz de uma vela, para poupar a bateria do veículo e garantir que ele possa ser ligado para sair dali.
— Foi o meu cunhado, que é transportador de caminhão, que nos cedeu (o veículo) pra ficar aqui porque ele não tá usando. Se ele precisar, aí vamos ter que sair. Mas por agora ele tá funcionando pra gente — disse a doméstica Juliana Santana.
Na Ilha da Pintada, o nível da água subiu mais rapidamente e com correnteza forte, o que dificultou a retirada de móveis dos moradores. Muitos precisaram inclusive de resgate por barcos com motor, que mesmo assim tiveram dificuldades para enfrentar a correnteza.
Em todo o bairro Arquipélago, cerca de 2 mil pessoas foram resgatadas por órgãos estaduais e municipais, mas a maioria não quis ir para abrigos públicos. Na quarta-feira (22), o prefeito Sebastião Melo chegou a visitar os acampamentos para conversar e sensibilizar as pessoas a aceitarem a ida aos espaços oferecidos pelo poder público. Como muitos recusaram a oferta, o Executivo afirma que distribuiu alimentos, produtos de higiene e água potável e instalou banheiros químicos.