Nelci Soto, faxineira por profissão, decidiu fazer o que sabe de melhor e passou o sábado (16) limpando residências tomadas por lama em Cruzeiro do Sul. A cidade, no Vale do Taquari, é uma das mais atingidas pela enchente mortífera da semana passada. A voluntária pegou baldes e panos e trabalhou de graça, sem escolher tamanho de casa e sem sequer conhecer os donos das moradias. Fez isso porque acha seu dever, como cidadã, ajudar quem perdeu quase tudo, levado pelas águas agitadas do ciclone.
— É carente ajudando carente. Só consigo usar o braço esquerdo na faxina, porque do outro eu recém operei tendões. Mas é só não abusar da força — sorri Nelci, enquanto o marido, João Loreno Soto, se dedica a remover entulhos, lama e móveis e empilhar tudo na rua, para secar.
Ele não tem emprego fixo e vive de pequenos serviços.
Os dois estão espantados com os efeitos do ciclone, que teve jeito de furacão na pequena cidade de 11 mil habitantes, contígua a Lajeado. São cinco mortos em Cruzeiro do Sul (terceiro maior número de vítimas) e milhares de moradores afetados, com 1.300 desalojados ou desabrigados.
Pudera. Uma mescla de vento, chuva, inundação e lama derrubou casas no rio Taquari e fez residências desabarem como pedras de um dominó, umas sobre as outras. Em alguns pontos o rio subiu 29 metros, algo jamais visto em 80 anos. A região concentra a maioria das 21 mil pessoas que ainda estão fora de casa em decorrência desse evento climático extremo.
Região unida pela solidariedade
O casal Gerson Garcia e Renata Cezar, ambos promotores de venda, tem dormido em casa por puro desespero, já que seu imóvel, mesmo sendo de alvenaria, está condenado. De cada lado da moradia desabou uma residência, desestruturando as paredes e desbarrancando parte dos alicerces, que dão para o rio Taquari. Tentam alugar algum local para morar, com os três filhos. Ganharam a solidariedade de alguns vizinhos, que mesmo sem muitos recursos, ajudam a remover entulhos.
Numa avenida que costeia o Taquari, a nossa equipe pergunta a um cidadão de quem são várias máquinas que se dedicam a remover a lama da via pública. O homem responde: de oito municípios da região, que emprestaram tratores, retroescavadeiras, pás mecânicas e patrolas para remover detritos, troncos de árvores, barro e automóveis despedaçados pela violência das águas. E como ele sabe disso?
— Sou o prefeito. Desde o dia da primeira chuva venho pedindo e ganhando ajuda dos colegas que foram menos atingidos pelo ciclone — diz João Henrique Dullius, mandatário municipal de Cruzeiro do Sul, que percorre a pé a avenida ribeirinha, conferindo o trabalho dos operários.
Dullius lamenta que num trecho de 15 quilômetros ao longo da RS 130, entre Cruzeiro do Sul e Venâncio Aires, "a estrada se desconfigurou". Tudo que estava próximo ao Taquari foi levado pelas águas, inclusive cabeceiras de pontes. Há partes de comunidades isoladas.
Na Rua João Schardong, uma das que une Cruzeiro do Sul a Lajeado, todos os moradores têm relatos de horror. Nenhuma casa escapou incólume ao avanço das águas lamacentas, que atingiram residências até o forro. Mesmo que a maioria das residências fique em pontos altos, acima de barrancos de cinco metros que costeiam o rio Taquari. Não adiantou.
O borracheiro Neri de Lima foi um dos que perdeu muito. Além da residência invadida pelas águas, com móveis e eletrodomésticos estragados, ele viu o Taquari levar oito máquinas de remendos pneumáticos, mais de 70 pneus novos e 500 usados, que revendia em toda região. Ele calcula que o rio lhe deu um prejuízo de R$ 300 mil, mas no sábado, após limpar o lamaçal, já estava no trabalho, lidando com o macaco para carros.
— O Taquari me levou os anéis, mas ficaram os dedos. Vamos trabalhar para recuperar — diz ele, que tem contado com ajuda de vizinhos na limpeza, muitos deles atingidos pelo ciclone que ficaram com pouco mais que a roupa do corpo.
Perto dali, na avenida, dois caminhões com tração nas seis rodas, repletos de mantimentos e roupas, eram descarregados por voluntários para dentro de um salão. São donativos recolhidos pelo Jeep Clube Lajeado. Eles percorrem a região, ingressando no lamaçal e ajudando a doar víveres e remover detritos.
— A gente conseguiu reunir fogões, colchões, comida e produtos de limpeza. Entregamos direto, aí evita a burocracia exigida nas doações oficiais. Dá para ver a alegria de quem recebe — descreve Guilherme Pinheiro, um dos jipeiros.
Doações de outros locais
A ajuda também vem de longe. O serralheiro Jadir Merigo, que mora no bairro Medianeira, em Porto Alegre, fez a alegria de desabrigados em Lajeado na manhã de sábado (16), ao levar uma Kombi cheia de roupas. Foi a terceira viagem feita em uma semana, mesmo em meio ao serviço diário. Em todas, distribuiu donativos coletados entre vizinhos na Capital. O motivo é que sua esposa tem familiares no Vale do Taquari e ele se comoveu. Conseguiu inclusive arrecadar R$ 10 mil para um morador ribeirinho, que teve a casa de madeira desmanchada pelas águas.
Uma das beneficiadas chorou ao receber as roupas. É a dona de casa Ivanir Rodrigues do Nascimento, que perdeu tudo que tinha, menos a vida dela e dos familiares.
— Minha casa partiu ao meio. Não sobrou um móvel, um eletrodoméstico. Ainda bem que esses anjos apareceram, mas o desafio maior é conseguir uma residência — desabafa ela.
As pessoas que moram longe e não têm como se deslocar até o Vale do Taquari podem fazer doações em locais específicos. Em Porto Alegre, os materiais podem ser entregues na central de doações da Defesa Civil, das 8h às 18h nesta quinta-feira (Avenida Borges de Medeiros, 1.501 - Porto Alegre). Ou em quartéis da BM e do Corpo de Bombeiros, assim como em outros municípios gaúchos.