A aposentada Marília Teresinha Ott, 77 anos, estava abrigada na sacada de uma vizinha quando ouviu fortes estalos de madeira, por volta da meia-noite de segunda (4).
Foi só o tempo de desviar o olhar para o barulho para ver a própria casa, onde morou por mais de 30 anos, ser arrastada pela correnteza que invadia Encantado, no Vale do Taquari. Com cinco cômodos, a residência rompeu a cerca, atravessou a rua e ficou acavalada sobre um muro de dois metros de altura. Lá dentro, pendia do forro lama e galhos sobre o que restou da mobília.
Duas horas antes, os filhos e amigos de Marília haviam conseguido esvaziar quase todo o imóvel, enquanto o leito do Rio Taquari, distante pouco mais de cem metros, levava tudo que encontrava pela frente.
— A água veio como se fosse outro rio — conta o filho Claudimir Ott, que na manhã desta quarta-feira (6) tentava limpar o terreno, transformado em um cipoal de madeira, ferro, lama e tijolos.
Assim como o chalé de madeira de Marília, um galpão que havia nos fundos também foi destruído pela correnteza. Restou em pé apenas uma pequena peça de tijolos, porém comprometida por rachaduras nas paredes.
O cenário não diferia nas demais casas da Rua Júlio de Castilhos. Sofás revirados no meio da rua, colchões sobre árvores, roupas, utensílios domésticos soterrados sobre uma camada de barro que em algumas residências chega a a 15 centímetros.
Na casa da operária Scheila Nichel Madeira, 46 anos, um jabuti trazido pelo rio transitava perdido em meio aos destroços causados pela enchente que alcançou o topo do imóvel. Segundo relatos dos moradores, o Rio Taquari começou a subir muito rápido, surpreendendo até mesmo moradores acostumados a inundações na região.
— Precisa de três dias de chuva pra alagar aqui. Desta vez não parecia estar chovendo tanto, mas a água veio descendo pelo rio muito depressa. Quando a gente viu os bueiros estavam estourando e tudo subiu com muita força — lembra Scheila.
Nos arredores do Frigorífico Dália, um dos principais empregadores do município, ovelhas jaziam pelo campo após serem arrastadas pela correnteza.
Perto dali, o bairro Navegantes foi um dos mais atingidos. A água chegou a alcançar o terceiro andar das palafitas mais altas. Reduto de imigrantes haitianos, o local permanecia com pelo menos três metros de água sobre as ruas.
— Eu estava trabalhando quando me avisaram que a água estava invadindo tudo. Ainda tentei chegar em casa, mas não deu para salvar nada — diz Milene Julim, auxiliar de limpeza, de 29 anos e que há 11 está radicada em Encantado.
A água não invadiu apenas as regiões ribeirinhas. No Centro, o depósito da Casa Bertozzi, tradicional loja de vestuário, foi completamente alagado. Na manhã desta quarta- feira, os proprietários descartaram na calçada 1,5 mil pares de sapatos encharcados. O despejo dos sapatos logo gerou uma aglomeração de pessoas que perderam na enchente, ávidas por uma proteção para os pés, ainda que molhadas.
— Nós estamos vivos. É o que importa. E essas pessoas podem encontrar ali algo que dê para usar — reconfortava-se a proprietária Salete Bertozzi.
Segundo a prefeitura, a enchente foi a maior em 107 anos de história do município. Um gabinete de crise foi montado no Centro Administrativo, para onde devem ser encaminhados os relatos de desaparecidos. Até o final da manhã desta quarta-feira, havia cerca de 800 desabrigados no Parque João Batista Marquese. A cidade está sem sinal de celular, sem água e há energia elétrica em poucos bairros. Não há registro oficial de óbitos, embora persistam relatos informais de pelo menos um corpo avistando boiando no Bairro Lago Azul.