Bicicletas, ferramentas, veículos, cercas e muros, arbustos e o que mais estivesse a menos de dois metros de altura do chão em parte do bairro Industrial, em Montenegro, foi coberto pela água ou levado por ela entre a noite de sexta-feira (16) e o domingo (18), por conta da cheia do Rio Caí. Com a forte chuva causada por um ciclone extratropical, o nível da água subiu sete metros, avançando sobre quatro quadras e invadindo dezenas de casas.
Nesta terça (20), segundo dia seguido de sol e primeiro sem água acumulada nas vias, a vizinhança recebeu caminhões da prefeitura para limpeza das ruas, enquanto dentro das casas seguia o trabalho com vassouras e rodos.
— Ainda não consegui nem ir buscar doação, porque sigo limpando tudo. A água baixou ontem (segunda), e amanhã já chove de novo. Precisamos levantar o que sobrou e seguir trabalhando — lamenta Marcos Xavier, 48 anos, desempregado há seis meses, morador da Rua Frederico Raman.
Ele diz que colocará fora duas camas e algumas roupas irrecuperáveis. Perdeu quatro galinhas, mas conseguiu salvar outras quatro.
Na casa de Xavier é possível ver, e medir, pela marca deixada na parede externa, até onde a água chegou: 2m10cm. A grande maioria das casas neste bairro tem uma elevação de pelo menos 1,80m em relação ao chão, antes de começar o piso. Nesta enchente, no entanto, a prevenção não foi suficiente. Em casas construídas ao nível da rua, o estrago foi ainda maior.
— Me avisaram que aqui tinha enchente, mas eu na época não sabia o que era enchente — diz Luz Maria Morales, 22, venezuelana que chegou a Montenegro em fevereiro com três filhos entre um e 6 anos de idade, explicando, em espanhol, que o termo pelo qual ela conhecia o fenômeno, que nunca tinha vivenciado, era “desborde”.
Ela descobriu, na noite de sexta, que a casa que ela alugava era próxima demais do Rio Caí. Quando uma amiga escreveu uma mensagem perguntando se a água tinha alcançado a casa dela, era tarde demais. Já não chovia, mas, da janela, Luz Maria viu a rua inundada. Interrompeu a janta e reuniu os filhos, com a ajuda do primo Sergio Figueroa, 34, que chegara à cidade três dias antes.
A família migrante saiu da casa já com água na porta, a bordo de um barco dos bombeiros, deixando para trás cerca de R$ 1 mil recém-investidos em eletrodomésticos, além dos móveis encharcados. O Rio Grande do Sul foi o lugar escolhido por eles depois de atravessar o Brasil e passar por maus momentos no Rio de Janeiro.
— Trabalhava em uma padaria, eram preconceituosos e desrespeitosos por eu ser venezuelano. Chegaram a pagar R$ 200 por um mês de trabalho — acusa Figueroa, pai de cinco filhos que estão em viagem rumo ao RS.
Ele diz que vai começar a procurar emprego em padarias e demais empresas de Montenegro assim que puder voltar para casa. A família vinda da Venezuela aguardava no Ginásio do Sesc de Montenegro que a água baixasse. Ali, eles receberam atendimento médico e roupas doadas, descobriram um quadro de pneumonia no caçula de Luz Maria, e pedem por ajuda financeira e emprego para que possam recomeçar.
Em outro ginásio da cidade, o Cinco de Maio, a população encontra mais roupas, alimentos e materiais de limpeza para doação, disponibilizados pela prefeitura. De acordo com números atualizados pelo Executivo municipal, foram 8 mil pessoas atingidas direta ou indiretamente pela cheia do rio, que atingiu 2,4 mil casas.
Uma delas era a de Mateus Ávila, 25, e Gabriele Ribeiro, 23, pai e mãe de Ethan, 1 ano e 8 meses. De chinelos e meias nos pés, o casal revezava o colo para o único filho, enquanto circulava entre mesas colhendo agasalhos para os três. Desde a noite de sexta eles estão na casa de familiares. Já tentaram voltar para a casa, mas ainda não deram conta da limpeza necessária. Eles relatam que tiveram dois tapetes furtados nesta segunda, ao deixarem as peças estendidas no muro da casa, para secar ao sol.
— Quando a água subiu pelos bueiros da rua, colocamos coisas em cima do sofá. Os móveis flutuaram e caiu tudo na água. Nem terminamos de limpar no domingo, e talvez já vá sujar de novo na quarta — contam, temendo mais chuva.
A polêmica da “lâmina d’água”
No começo da manhã desta terça (20), monitoramento do Serviço Geológico do Brasil apontava que o nível do rio estava baixando lentamente e já estava abaixo do considerado risco de inundação.
Na sexta (16), no entanto, a comunicação da Defesa Civil pode ter feito com que moradores subestimassem o risco. “O rio está subindo, em média, três centímetros a cada hora. Ou seja: vai ter uma enchente, mas é de pequena proporção, sendo uma pequena lâmina d’água. Então, queremos deixar a comunidade bem tranquila, pois estamos aqui, com a logística pronta”, disse o coordenador da Defesa Civil no município, Carlos Ferrão, em vídeo divulgado na página da prefeitura de Montenegro às 14h de sexta-feira.
Em ao menos quatro dos locais em que a reportagem de GZH esteve nesta terça-feira, houve comentários de pessoas atingidas pela enchente sobre este vídeo.
— A gente sempre levanta as coisas do chão quando sabe que vai vir cheia. Quando vimos este vídeo, não fizemos nada porque ficamos tranquilos — conta Edson Rodrigues, também residente na Rua Frederico Raman.
— Vi o site da Bacia do Caí e avisei o pessoal que o nível estava alto, mas ninguém levou a sério, pois confiaram na Defesa Civil — lembra o irmão de Edson, Eleandro, morador de uma rua alguns metros mais afastada.
A casa de Eleandro não foi invadida pela água porque ele a construiu acima da altura da maior enchente da história do Caí. A família de Edson se abrigou na casa do irmão, mas ele ficou, principalmente para cuidar dos cachorros. Para que os mascotes não ficassem dentro da água, o morador improvisou uma espécie de "sacada".
Questionada pela reportagem, a prefeitura de Montenegro divulgou nota em que diz que evita comentar o prognóstico e a comunicação feita pela Defesa Civil e afirma que o primeiro momento é de ajuda humanitária aos desabrigados e limpeza da cidade.
Leia a resposta enviada pelo executivo municipal na íntegra:
A preocupação da Administração Municipal, desde a madrugada de sábado, é minimizar os efeitos das enchentes, acolhendo os desabrigados e distribuindo roupas, alimentos e produtos de higiene e limpeza a todos os atingidos. Importante ressaltar que não há desaparecidos ou mortos e que, desde que o Rio começou a subir, todos os órgãos de governo estão mobilizados em ações de socorro e resgate. Quando este trabalho – prioridade máxima – for concluído, serão apuradas as responsabilidades e tomadas as providências para que situações assim não se repitam.