Por Léo Gerchmann
Jornalista, autor, entre outros, de “A Fonte: A Incrível História de Salim Nigri” (2020)
Não é acaso que o Levante do Gueto de Varsóvia tenha unido a esquerdista Organização Judaica de Combate (ZOB) e a direitista União Militar Judaica (ZZW). O levante foi uma reação de judeus às tropas alemãs quando preparavam sua deportação massiva para os campos de extermínio de Majdanek e Treblinka. Sobretudo, foi um momento de altivez diante da passividade a que foram submetidos pela máquina de matar nazista, protagonista do genocídio que significou esse termo.
Além do absurdo número de 6 milhões de judeus assassinados industrialmente, Adolf Hitler tinha até a lista com o número de judeus existentes em cada país. Era um extermínio programado. Hitler queria conquistar o mundo e dele varrer uma etnia que odiava. O conceito de genocídio é a eliminação deliberada de um povo, e disso se tratava.
Mas por que não é acaso a união de pessoas com ideologias opostas? Porque ali, naquela ocasião, naquele limite existencial, misturaram-se uma altivez enérgica do judeu que combatia a crueldade do destino a ele imposto e a solidariedade de pessoas que tinham consciência da morte certa que lhes esperava, preferindo ainda assim lutar pela vida.
O levante ocorreu entre 19 de abril e 16 de maio de 1943. O grande nome da resistência foi Mordechai Anielewicz, do movimento juvenil judaico de esquerda Hashomer Hatzair, com a parceria de Pawel Frenkel, do Betar, movimento juvenil judaico de direita. Não é exagero nem romantização dizer que ambos se completavam nos quesitos generosidade e altivez.
Anielewicz formou uma frente de movimentos esquerdistas, que incluía o Hashomer, o Dror e outros, reunidos no ZOB. Frenkel formou o ZZW, encabeçado pelo Betar. O motivo para a formação desses grupos de resistência foi que entre 22 de julho e 12 de setembro de 1942, os nazistas já haviam deportado ou assassinado 300 mil judeus no Gueto de Varsóvia.
Aqueles dias de resistência em 1943 mostraram ao povo judeu que, sim, poderia reagir. Não estava destinado a se resignar diante da ameaça existencial. Era a ética judaica, com a compreensão do humano, que se manifestava e dava uma lição ao mundo. Duas frases do sábio Hillel, o “sábio dos sábios”, completavam-se nesse episódio histórico.
Primeira frase: “Se eu não for por mim, quem o será? Mas se eu for só por mim, que serei eu? Se não agora, quando?”. A outra, mais conhecida: “Não faças ao teu próximo o que tu não gostarias que fizessem a ti”. O talmudista Hillel viveu no início da Era Comum (foi contemporâneo de Jesus) e chegou aos 120 anos. Também era conhecido como “o ancião”.
A “regra de ouro” da ética judaica, que explica em poucas palavras a essência da Torá (o “Pentateuco”) é o “não faças ao teu próximo...”. Em Varsóvia, naquele triste e gelado primeiro semestre de 1943, a sabedoria do “ancião” foi posta em prática na sua plenitude. O levante às portas da morte é uma lição que pode perfeitamente ser universalizada.
Uma curiosidade: depoimentos colhidos pela historiadora Ieda Gutfreind entre membros dos movimentos Dror e Betar quando foram fundados em Porto Alegre (o Dror, em 1945 e o Betar, em 1931) mostram suas peculiadades. O Dror tinha a visão generosa e solidária do socialismo, com a defesa firme do sionismo nesses moldes. O depoimento de um menino que aderiu ao movimento nos seus primórdios mostra o encantamento ao dividir seu lanche (maçãs) com um companheiro (ovos e sanduíche). O Betar, conforme um dos seus primeiros integrantes, trazia a postura de levantar o “orgulho judaico”, enfatizando a altivez.
No levante de 1943, esses valores foram reunidos e levados à prática diante da ameaça existencial. Foi um marco. A memória da fragilidade na diáspora de 1,9 mil anos, com inquisições e pogroms, chegou ao seu limite na “Shoá” (Holocausto) e recebeu um sinal de basta no levante de Varsóvia, o que alimentou atitudes posteriores de resistência.
Não bastassem as deportações e assassinatos de centenas de milhares, o próprio gueto era um caldeirão que impunha uma reação. Concentrados naquele local em razão da sua etnia, os cerca de 380 mil judeus locais eram 30% de Varsóvia. Viviam em condições miseráveis e insalubres na área que tinha apenas 2,4% da cidade, em termos territoriais.
O psicanalista Abrão Slavutzky, organizador da obra O Dever da Memória – O Levante do Gueto de Varsóvia (AGE, 2003), lembra que a resistência à Shoá, fato singular pela busca da eliminação de todo um povo, traduz a ideia do Pessach, cuja celebração ocorria naquele 19 de abril de 1943. A liturgia do Pessach enfatiza a memória da escravização no Egito, que levou o povo judeu a reagir e seguir adiante, na Terra de Israel.
Uma história que se repete.
Saiba mais
Durante a Segunda Guerra Mundial, os judeus foram confinados em guetos pelos nazistas. No de Varsóvia, na Polônia, o espaço que antes da guerra servia de moradia para 100 mil pessoas chegou a ter mais de 400 mil prisioneiros. A partir de 1942, os que ainda resistiam aos maus tratos começaram a ser enviados para campos de extermínio. O levante que começou em 19 de abril do ano seguinte foi uma tentativa de resistência, que conseguiuse manter após diversas batalhas com os nazistas até 16 de maio de 1943.