Por Diana Lichstenstein Corso
Psicanalista
O que vocês vão encontrar em Levél – um dos trabalhos da exposição Palavrar, de Elida Tessler (leia quadro abaixo sobre a mostra) – é um conjunto de cartas em papel transparente escritas em húngaro. Sobre elas, a artista visual iluminou as variações dessa palavra, que quer dizer “carta” na língua magiar. É um caça-palavras, mas o que se encontra não revela um enigma, apenas fascina com seu mistério. São as cartas que meu pai recebeu de seu pai.
Juan Lichtenstein foi um sobrevivente discreto, a maioria deles é. Em parte, porque nem saberiam como explicar-se, em parte porque é impossível sobreviver a uma tragédia sem envergonhar-se frente aos que sucumbiram. Ele tinha 17 anos quando ficou claro para os judeus húngaros que era fugir ou morrer. Embarcou sozinho para a América, só reviu sua mãe, única da sua família que se salvou, oito anos depois.
Meu avô, Jenö Lichtenstein, percebeu a gravidade dos avanços nazistas sobre a Hungria. Por isso se exauriu atrás de vistos para salvar a família. Porém, àquela altura, poucos países recebiam refugiados judeus. Os raros documentos para emigrar eram vendidos por oportunistas.
Eis que surge a possibilidade de embarcar os filhos para Montevidéu, onde, por alguma tramoia, abriram-se vistos para encher um barco de jovens judeus meninos que seriam “tutelados” por uruguaios.
Por insistência do pai, o primogênito János partiu aos 17 anos para o desconhecido Uruguai. Por resistência da mãe, seu irmão István, com 14, ficou na Hungria. O resto da família comprou vistos para o Chile, a caminho de se reunir com Juan, mas os documentos nunca chegaram.
János, que no desembarque foi rebatizado como Juan, passou de 1939 a 1941 enviando notícias, tentando acalmar sua agoniada família. Apesar dos altos custos do correio, a troca de cartas era intensa. Ocorria através de uma folha de papel-avião, leve e transparente, escrita à máquina, por onde voavam conselhos, acolhidas e esperanças.
Após sua morte, aos 86 anos, encontrei um maço dessas cartas que ele recebia. Não compreendia seu conteúdo, não falo nem leio húngaro, mas as folhas etéreas pesavam como chumbo. Depois de um tempo, as entreguei à Elida Tessler, de quem Juan gostava muito. Eu acreditava que ela saberia o que fazer com o legado.
A partir de 1942, fez-se o silêncio, a correspondência familiar cessou, a guerra cortou os caminhos do mundo. Jenö e István foram deportados para Auschwitz. Minha avó escondeu-se em um porão imundo, onde sobreviveu. Em suas memórias, meu pai escreveu que as circunstâncias do desaparecimento do pai e do irmão eram “uma tragédia essencialmente incomunicável, demasiado espantosa para a linguagem cotidiana”. O silêncio se impõe sobre tudo o que é traumático.
Trauma é ruptura que deixa estragos permanentes na subjetividade dos que o sofrem. Abre-se um buraco, uma ferida incapaz de cicatrizar. A morte e os abusos estão no topo da lista dos fatos traumáticos e as guerras são profícuas nos dois quesitos. Só as palavras podem diminuir o tamanho desse rombo, ajudando a que não se caia dentro dele.
As tragédias, ocasião para inúmeros traumas, são feitas da sucessão de dois momentos: o pungente e o silencioso. Quando algo dramático acontece, pode ser um acidente, uma agressão ou uma guerra, sucede-se uma devastação. Frente a uma dor lancinante as palavras se esvaem. Cresci “escutando” esse silêncio, que se impunha mesmo quando meu pai tentava contar sua história. Com o tempo, os lutos aliviam, mas nunca deixam de pulsar. No caso dos traumas essas lembranças causam dores agudas. São, como dizia meu pai, “um memento que apaga a alegria”.
Aos 76 anos, Juan escreveu suas memórias. Um livro familiar redigido à mão, cópia única. Seu objetivo era livrar do esquecimento a história dos seus parentes mortos. Em seu estilo, a vitimização e o ressentimento não têm vez.
Em suas linhas, é sensível a busca por um relato justo, a luta pela leveza. Aos sobreviventes, não lhes interessam os detalhes mórbidos. Meu pai entremeou fatos com poesias, queria escrever em nome da vida. As cartas de sua família, agora em exposição, são documentos tristes, mas também há muita garra nessas translúcidas folhas voadoras.
Meu pai teria concordado que a única forma digna dessas cartas escaparem do esquecimento seria pelas mãos poéticas de uma artista. E ele certamente teria escolhido a Elida.
Saiba mais
- Concebida por Elida Tessler, a instalação Levél sobrepõe, em cinco mesas de luz, mais de 90 cartas, escritas em húngaro, no início dos anos 1940, em folhas de papel quase transparente. Na superfície de vidro que serve de tampo, a artista assinala todas as vezes em que encontra a palavra levél (“carta”) e suas derivações.
- Esse é um dos seis trabalhos que Elida apresenta a partir da tarde deste sábado (22/10) na Biblioteca Pública do Estado (Rua Riachuelo, 1.190), em Porto Alegre. A exposição, intitulada Palavrar, homenageia Donaldo Schüler, por ocasião dos 90 anos do poeta, tradutor e ensaísta. Às 16h deste sábado, ela e ele autografam na Biblioteca os livros de artista Ist Orbita/Orfeurídice e Grafar o Buraco (editora Azulejo Arte Impressa).
- Palavrar estende-se ainda, com outros trabalhos, à Galeria Bolsa de Arte (Visconde do Rio Branco, 365), com abertura às 11h deste sábado. Outra parte da mostra, com mais duas obras, foi inaugurada no último sábado no Centro Cultural da UFRGS, no Campus Central da universidade. Em todos os espaços, a entrada é franca.