Por Abrão Slavutzky
Psicanalista e escritor, organizador de “O Dever da Memória – O Levante do Gueto de Varsóvia” (2003)
O Gueto de Varsóvia era só ruínas após o Levante. Entretanto, alguns metros abaixo dos escombros, estavam os arquivos secretos do Gueto de Varsóvia, conhecidos como Oyneg Shabes (“Alegria do Sábado”). Secretos porque, se descobertos, seria a morte de todos, pois o genocídio nazista ambicionava não só a morte dos judeus, como a extinção de sua cultura, da história e da memória. Foi precisamente o motivo do líder dos arquivos – o historiador Emanuel Ringelblum – buscar a preservação da vida judaica para as futuras gerações. Ele pertencia ao partido Poalei Zion, de esquerda, e escreveu, por exemplo, sobre os meninos do gueto: “É comum que as crianças mendigas morram à noite na calçada. Acabei de saber de uma cena terrível em que um mendigo de seis anos de idade agonizou a noite toda, sem conseguir nem se arrastar para pegar um pedaço de pão que lhe tinham atirado”.
O primeiro lote do arquivo foi encontrado em setembro de 1946, e o segundo, em dezembro de 1950. O terceiro segue desaparecido. O espólio foi guardado em tachos de leite e caixas de metal, pois tinham que resistir ao fogo e à água. Nos arquivos, há uma variedade de materiais: monografias, diários, jornais periódicos em ídiche e hebraico, registros públicos, cartazes, folhetos, ingressos, convites, cartas. Dos 60 integrantes, só três sobreviveram: Hersh Wasser, o secretário, que sabia onde estavam escondidos os arquivos, sua esposa Bluma e a escritora Raquel Auerbach. Aliás, Raquel, também dirigiu um sopão onde todos os dias era servido a centenas de famintos. Tinha feito duas faculdades: Psicologia (quando estudou a obra de Freud) e Filosofia. Na década de 1930 se mudou para Varsóvia, onde trabalhou como jornalista e viveu no gueto. No início de 1943, transpôs o muro e sobreviveu na clandestinidade; depois da guerra, ajudou na busca dos arquivos. Em 1950, foi viver em Israel e trabalhou no Museu do Holocausto Yad Vashem, em Jerusalém. Lá, Raquel criou o Departamento de História Oral e ajudou a promotoria que julgou Adolf Eichmann e depôs como testemunha. Se Hannah Arendt tivesse conversado com Auerbach durante o julgamento, provavelmente não teria escrito que Eichmann não podia diferenciar o bem do mal. Teria aprendido que o nazismo, o racismo, nunca é banal.
Agora, algum leitor já deve estar se perguntando por que os arquivos são tão importantes se pertencem a um passado distante.
A memória é um imperativo da cultura, é até um mandamento bíblico – Zakhor, em hebraico –, lembrar. A memória é mais que do um dever, é uma fonte essencial de aprendizagens e identificações. Cada um é marcado por gerações passadas, pois a realidade psíquica expressa os laços simbólicos que constroem uma pessoa. Aprender com a história familiar dos demais enriquece a gente. Um exemplo são as palavras de Gustawa Jarecka, sobre o ato de escrever no gueto: “Estamos com a corda presa no pescoço. A vontade de escrever é tão forte quanto a aversão pelas palavras. Odiamos as palavras porque demasiadas vezes encobrem o vazio ou a vileza. Desprezamos as palavras porque empalidecem diante da emoção que nos atormenta. E, no entanto, outrora, a palavra significava dignidade humana e era o melhor bem do homem – um instrumento de comunicação entre as pessoas. O registro deve ser arremessado como uma pedra sob a roda da História para detê-la. É possível perder todas as esperanças, menos uma, que o sofrimento e a destruição desta guerra façam sentido quando forem vistos com distanciamento”.
Sua esperança estava posta no futuro, em nós, e morreu em janeiro de 1943 com seus dois filhos, no vagão que os levava para Treblinka. Essa história está no início do livro Quem Escreverá Nossa História?, de Samuel D. Kassow, clássico sobre os arquivos do Gueto de Varsóvia, leitura indispensável sobre o Holocausto. A memória é essencial, não só o que se recorda, mas há na realidade psíquica um tempo que não passa (o inconsciente), onde estão as marcas mnêmicas gerando efeitos no presente. Esse passado se manifesta, por exemplo, nos sonhos e sintomas. Já no nível social há o historiador, que é uma espécie de médico da memória: trata dos ferimentos, trata de recuperar o passado de um povo, da humanidade.
Convém aprender do passado, como são os arquivos do Gueto de Varsóvia. Além do que, o genocídio e a crueldade não são eventos só da História. Seguem presentes, ocorrem perto da gente. Escrevo para lembrar que não devo ser indiferente.
Em debate
Quarta-feira (19/4), dia em que o início do levante completa 80 anos, haverá um Ato Internacional em Honra à Vida. Em Porto Alegre, o psicanalista Abrão Slavutzky e o filósofo Ricardo Timm de Souza participarão de conversa a partir das 19h no Espaço da Convergência da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul (Praça Marechal Deodoro, 101, entrada pelo estacionamento junto ao Theatro São Pedro).