Livros de sobreviventes do Holocausto são impactantes na medida em que relatam crueldades de uma época não muito distante. Mas são raras as autobiografias de asilados no Brasil. Histórias de quem refez a vida em Porto Alegre, então, podem ser consideradas relíquias. É o caso da trajetória do holandês Louis Frankenberg, que publicou o livro Cinco Vezes Vivo – Um Sobrevivente do Holocausto à Procura do Seu Passado, escrito em parceria com seu genro, o jornalista Ricardo Garcia.
Louis tinha 11 anos quando deixou Amsterdã e desembarcou com a irmã Eva na capital gaúcha, em 1947. Trouxe no avião uma bagagem desumanamente pesada: era uma criança judia que sobrevivera a dois campos de concentração nazistas, após ter pais, avós, tios e primos assassinados em campos de extermínio.
A história de Louis Frankenberg foi divulgada pela primeira vez na imprensa brasileira em reportagem publicada no caderno DOC de Zero Hora, em outubro de 2020. Agora, sua autobiografia costura, com riqueza de detalhes e de pesquisa bibliográfica, a trajetória da família e do avanço nazista na Holanda.
Louis refez a vida em Porto Alegre e em São Paulo sem ideia do que ocorrera com seus pais e avós, de quem se separara para fugir da perseguição nazista. A busca ilustra o vil efeito do Holocausto: além de acabar com o futuro de 6 milhões de judeus, apagou o passado de outros tantos.
O livro é fruto de uma extensiva pesquisa empreendida por Louis ao longo de décadas em museus, memoriais e arquivos históricos nos Estados Unidos e na Europa em busca de juntar o quebra-cabeças de sua história. “Eram dezenas e dezenas de cartas, ofícios, relatórios, pareceres médicos e depoimentos que revelavam pequenos e grandes detalhes da criança que eu era quando a Segunda Guerra Mundial terminou e da movimentação em torno do que seria feito de mim. Eu não conhecia nada daquilo.”
Quando criança, Louis tinha uma infância feliz em Alkmaar, interior da Holanda. O avanço do nazismo foi gradativo, de forma que a população nutria esperanças de que o clima seria passageiro. “No princípio, a ocupação até parecia indolor e quase nada mudou na organização do país nem em relação aos judeus”, conta. Mas a escalada de perda de direitos foi rápida: “As ordens das forças ocupantes sucediam-se como uma cascata de absurdos: os judeus foram proibidos de possuir aparelhos de rádio, de ir aos mercados, de frequentar piscinas e praias em áreas turísticas, de viajar livremente”.
Após perder todo o patrimônio, a família se mudou para Amsterdã. Antevendo a captura, os pais de Louis entenderam que deveriam se separar dos filhos para protegê-los. Louis e Eva foram enviados para um internato católico. Meses depois, os pais e a avó foram capturados e mortos no campo de Sobibor, na Polônia. Louis também foi preso e viveu nos campos de concentração de Westerbork, na Holanda, e Theresienstadt, na atual República Tcheca. Antes de ser detido, salvou a irmã Eva, que retornava de bicicleta da escola e viu os gestos para que fugisse.
Não é a única cena emocionante do livro. Trechos descrevem os esforços dos pais para fugir da Europa e salvar os filhos. Em telegrama à família já asilada em Porto Alegre, a mãe de Louis, Trudi, solicita socorro com mensagens cifradas. Nazistas são chamados de “Eslbeth”, e “Tia Alice” é metáfora para o dinheiro para o visto de fuga. “Todos saudáveis. Desde março aqui. Eslbeth gravemente doente. Médico receita mudança de ares. Esperamos de Tia Alice boas notícias o quanto antes.”
Em Porto Alegre, Louis viveu no bairro Moinhos de Vento com irmã, tios e avó materna. No livro, descreve sua juventude na Rua Santo Inácio, na Avenida Cristóvão Colombo e o namoro com a futura esposa Helena, filha de tchecos e colega no Colégio Batista. Hoje, aos 85 anos, tem três filhos e netos.
A autobiografia é um testemunho histórico valioso que reforça a importância de conhecer o passado para evitar novas violações de direitos humanos. “Muitas vezes, à noite, sozinho na cama, tive de enxugar lágrimas que brotavam espontaneamente dos meus olhos, quando dos documentos e das imagens emergia a evidência incontestável de que tínhamos sido uma família feliz. Uma família feliz, num passado feliz que me fora roubado, mas que eu não deixaria que fosse esquecido”. De fato, o livro é uma grandiosa contribuição para que o nazismo jamais seja esquecido.
Sessão de autógrafos
Cinco Vezes Vivo – Um Sobrevivente do Holocausto à Procura do Seu Passado será discutido em encontro com Louis Frankenberg e Ricardo Garcia mediado pelo repórter de GZH Marcel Hartmann, autor da reportagem sobre Louis publicada em 2020. Às 17h de sexta-feira (4/10), na programação da Feira do Livro de Porto Alegre. A sessão de autógrafos será logo em seguida, a partir das 19h.