Já sobrecarregados com a pandemia e pressionados pela proximidade do inverno, gestores de saúde pública no Rio Grande do Sul enfrentam outro problema: a falta de médicos. A demora na transição entre os programas federais destinados a garantir a presença desses profissionais em todo o país e a redução nas vagas previstas ao Rio Grande do Sul mobilizam as prefeituras, que apelam para contratações temporárias e reorganização de pessoal a fim de aliviar o impacto da defasagem nos postos de saúde.
A quantidade de vagas providas pela União no RS vai encolher de 1.323 — total previsto pelo programa Mais Médicos, criado em 2013 no governo Dilma Rousseff (PT) e atualmente em processo de extinção na gestão de Jair Bolsonaro — para 1.103 na nova iniciativa, chamada Médicos Pelo Brasil, o que resultará em diminuição de 17% mesmo quando todas as convocações tiverem sido feitas.
Além disso, conforme o Conselho de Secretarias Municipais de Saúde (Cosems-RS), cerca de um quarto de todas as vagas criadas pelo Mais Médicos já estão desocupadas, algo em torno de 330 profissionais, enquanto os novos especialistas prometidos pelo novo programa federal chegam em ritmo lento.
A transição entre os programas funciona da seguinte forma: à medida que os contratos firmados pelo antigo vão se encerrando, essas vagas são fechadas, e o Ministério da Saúde realiza novas convocações periódicas de acordo com as regras do Médicos Pelo Brasil, que envolve processos seletivos e diversos chamamentos ao longo do tempo.
O problema é que há descompasso entre a saída de parte dos profissionais e a chegada de novos. Até a metade de maio, segundo o Cosems-RS, foram chamados 115 médicos em duas convocações diferentes para municípios gaúchos — patamar insuficiente para dar conta da demanda, principalmente das cidades menores e menos atrativas à categoria.
— Há preocupação do conselho de secretarias de Saúde com a perda de vagas no Estado e com a velocidade de reposição. Estamos sempre em contato com o Ministério da Saúde, buscando informações, porque o nosso objetivo é que não ocorra desassistência — sustenta o presidente do Cosems-RS e secretário em Santa Maria, Guilherme Ribas.
Em Harmonia, no Vale do Caí, por exemplo, o médico cubano que atendia a população havia dois anos teve o contrato encerrado no final do mês passado, mas a cidade ficou sem notícia de quando receberá um substituto mesmo tendo se cadastrado junto ao Ministério da Saúde.
Não nos deram previsão (de quando chegará um profissional pelo novo programa federal). Então tivemos de fazer um contrato emergencial.
SIMONE KLASSMANN
Secretária de Saúde de Harmonia
A solução, para não comprometer o atendimento à população de 5 mil habitantes, foi fazer um contrato emergencial com uma empresa prestadora de serviço, além de seguir contando com outros cinco profissionais com vínculo direto com a prefeitura. Para dar conta da demanda, porém, mesmo especialistas acabam fazendo também clínica geral, a exemplo do ginecologista do centro de saúde.
— Não nos deram previsão (de quando chegará um profissional pelo novo programa federal). Então tivemos de fazer um contrato emergencial com uma empresa por meio do nosso consórcio (Consórcio Intermunicipal do Vale do Caí, que reúne prefeituras da região) — afirma a secretária de Saúde de Harmonia, Simone Klassmann.
A contratação garante mais um profissional em pelo menos três dias da semana, podendo ser maior conforme a necessidade. O Cosems-RS e a Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs) dizem não ter relato de cidades completamente desassistidas graças a esse tipo de ação por parte das prefeituras, mas indicam que há dificuldade generalizada para atrair um maior número de médicos, seja por meio das iniciativas federais ou por conta própria.
Pesquisa da Famurs
Um levantamento realizado pela Famurs a pedido de GZH, com uma amostragem de 55 prefeituras que responderam ao questionário, mostra que 41 delas (equivalente a 75%) tinham carência de pelo menos um profissional, e as 14 restantes estavam com o quadro completo. Apenas nesse universo pesquisado, havia carência de 115 médicos.
— O novo programa federal é positivo, deverão ser feitos diversos chamamentos. Mas, de fato, há uma preocupação entre prefeitos de ficar sem alguns médicos durante a transição. Tentamos ajudar, fazer um meio de campo em relação aos pleitos de municípios que chegam até nós — afirma o presidente da Famurs, Eduardo Bonotto.
Procurado por GZH, o Ministério da Saúde se manifestou por meio de nota. A pasta informa que "os contratos vigentes do programa anterior não serão cancelados ou suspensos. A finalidade do Médicos pelo Brasil é prover profissionais médicos em locais de difícil provimento ou de alta vulnerabilidade".
Os novos chamamentos devem ocorrer à medida que vão terminando os contratos do Mais Médicos. O governo não se manifestou sobre eventuais queixas envolvendo a transição entre os programas ou reduções pontuais de vagas.
"É o pior momento nos últimos anos"
A escassez de médicos resulta em prejuízos ao atendimento à população em cidades do Interior e exige que as prefeituras saiam em busca de profissionais por conta própria, muitas vezes por meio de contratos emergenciais, para que a carência de pessoal não feche os postos.
Trindade do Sul, onde vivem 5,7 mil pessoas no norte gaúcho, conta com três médicos, mas o contrato de um deles, assinado por meio do Mais Médicos, vence em setembro. O município não tem garantia, até o momento, de que receberá reposição. Além disso, já existem duas vagas em aberto, mas a prefeitura encontra dificuldades para encontrar interessados.
— Em vez de receber, perdemos uma médica que foi selecionada pelo novo programa do governo e foi trabalhar em outra cidade. Com esse déficit, não conseguimos atender plenamente a nossa demanda — afirma a coordenadora de Saúde da prefeitura, Luciane Chagas.
Os buracos na escala dificultam a realização de visitas às casas de pacientes, aumentam a fila na unidade de saúde, exigindo a aplicação de critérios de prioridade para atendimento, e demandam medidas temporárias, como a renovação do receituário médico uma vez sem o comparecimento do doente ao posto.
— Esse é o pior momento que enfrentamos nos últimos anos — acrescenta Luciane.
As contratações emergenciais são um dos principais recursos utilizados pelos municípios para evitar problemas ainda maiores. Em Santo Cristo, no Noroeste, havia um profissional concursado — dois do Mais Médicos e duas contratações emergenciais —, mas um dos profissionais vinculados ao programa federal encerrou o período de trabalho neste mês, e contrato do segundo termina no ano que vem.
— O profissional do Mais Médicos cujo contrato terminou era cubano. Agora, estamos esperando que venha alguém do Médicos pelo Brasil, mas não temos nada oficial ainda — afirma o coordenador de Saúde do município, Léo Afonso Birk.
A solução diante da perda de uma vaga, segundo Birk, é redistribuir a demanda de serviço entre os quatro médicos restantes. O coordenador pondera que mesmo as contratações em caráter emergencial têm eficácia limitada, já que muitas vezes os profissionais vão embora quando recebem uma proposta melhor, ou deixam a cidade para complementar a formação por meio de uma residência.
— Vamos esperar pelo governo federal para tentar suprir essa vaga que está aberta — afirma.
Simers: nova iniciativa tem vantagens
Presidente do Sindicato Médico do Estado (Simers), Marcos Rovinski afirma que o Médicos pelo Brasil precisaria avançar com mais rapidez para atender às necessidades dos municípios, mas entende que o programa tem muitas vantagens em relação à iniciativa anterior.
— Evidente que a transição não ocorre na velocidade em que os prefeitos, principalmente no Interior, gostariam. Mas temos informação do Ministério da Saúde de que todas as vagas serão preenchidas, com a vantagem de que serão médicos registrados no Conselho Regional de Medicina, com formação comprovada, e salários condizentes com essa formação — sustenta Rovinski.