O quarto dia do Tribunal do Júri da boate Kiss, ocorrido neste sábado (4) contou com três depoimentos. O primeiro foi o organizador de eventos Alexandre Marques, chamado pela defesa do réu Elissandro Spohr, sócio do estabelecimento. Depois, houve o testemunho de dois sobreviventes: Maike dos Santos, 29 anos, e Cristiane dos Santos Clavé, 34. Ambos perderam amigos no incêndio, ocorrido no dia 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria.
Iniciado às 9h, o depoimento de Alexandre Marques foi o mais longo do dia: durou a manhã inteira, foi interrompido às 12h30min, retomado às 14h30min e encerrado por volta das 15h30min. O organizador de eventos afirmou que desconhecia a lei de Santa Maria que proibia o uso de espuma no isolamento acústico de casas noturnas e que viu esse material ser usado em outros estabelecimentos.
A testemunha alegou que era comum o acionamento de artefatos pirotécnicos durante os shows das bandas que produzia. No entanto, relatou que, em uma preparação de show na Kiss, envolvendo a banda que promovia, em uma ocasião anterior à tragédia, o réu Elissandro Spohr não autorizou que determinados fogos de artifício fossem utilizados.
A advogada Tatiana Borsa, da defesa do réu Marcelo de Jesus dos Santos, questionou quem costuma ser responsável pelo uso de fogos de artifício durante apresentações em shows.
— Eles não usam. Eu uso. A banda toca. Tudo que vem externo da banda eu que fazia na época — respondeu Alexandre Marques.
O então organizador de eventos afirmou que, se ainda trabalhasse nesse setor, “provavelmente estaria usando” esse tipo de equipamento. Em seu entendimento, a fatalidade não acontecido devido à existência de espuma no isolamento acústico.
— Foram erros que vieram antes e levaram a isso. Uma junção de erros de repente. Mas o maior foi acender (o sinalizador) e erguer para cima. Na minha visão — pontuou Alexandre.
Às 15h30min foi dado início ao depoimento da vítima Maike dos Santos. Então com 20 anos, o jovem foi à festa para celebrar o aniversário da amiga Andrielle Silva, que morreu na tragédia. Ele disse que demorou a perceber o início do incêndio e foi tentando encontrar a saída junto da multidão, mas tinha dificuldade para enxergar, pois seus olhos ardiam.
— Creio que eu desmaiei e alguém posteriormente me tirou. Ou entrei em choque. Teve um momento em que apaguei dentro da boate — lembrou Maike, que ficou hospitalizado por quase um mês e em coma por uma semana.
Formado em Desenho Industrial, o jovem escreveu seu trabalho de conclusão de curso sobre a boate Kiss. Ao responder às perguntas da defesa, ele disse ter concluído que um reforço na sinalização ou portas de saída teriam dado outro desfecho:
— Se tivesse mais uma porta no lado oposto e se tivesse sinalização de saída mais adequada, ou não teria a tragédia ou teria amenizado. Minha conclusão foi que facilitaria ter outra (porta), mas o local seria determinado por engenheiro ou arquiteto — resumiu Maike.
Questionado sobre se em algum momento recebeu algum tipo de ajuda do município ou Estado, ou algum pedido de desculpas, Maike disse que não.
— Nenhum pedido de desculpa, abraço. Nunca. O que vi foi mais cinismo mesmo. (…) Foi nós por nós, familiar por familiar.
O terceiro e último depoimento foi de Cristiane dos Santos Clavé, iniciado por volta das 17h30min, com duração de cerca de uma hora e meia. Seu relato é de que só conseguiu sair da boate porque era frequentadora do local e conhecia sua geografia, mas nem todos tiveram a mesma sorte – inclusive 15 amigos e conhecidos que morreram naquela noite.
— Era muito escuro e, com a fumaça, não dava para enxergar nada. Eu saí porque eu conhecia o caminho. O Leandro (amigo de Cristiane, que morreu na ocasião) eu tenho certeza de que ele foi para lá (o banheiro, onde ele foi encontrado) porque ele achava que era a saída. Tenho certeza de que ele errou a porta. Eu acredito que as pessoas se metiam no primeiro vão que achavam — avaliou Cristiane.
Na noite do incêndio, os filhos da sobrevivente haviam ficado com o irmão dela. Emocionada, ela relatou aos jurados e demais presentes no plenário o momento em que os encontrou, aliviada por ter sobrevivido.
— Quando cheguei no portão de casa desabei, porque eu tinha voltado para os meus filhos. Enquanto eu estava lá, sabia que não podia perder minha bolsa porque tinha que avisar os meus filhos que eu estava bem. Depois, fiquei 48 horas sem dormir e começou a aparecer os nomes das pessoas que iam identificando. Quinze vezes eu ia dizendo para o meu irmão “eu conheço”, “eu conheço”, “eu conheço” — contou Cristiane.
Ainda com sequelas, a sobrevivente toma medicamentos contínuos que custam mais de R$ 500 por mês. Disse que, inicialmente, pagava o valor de seu próprio bolso, mas, depois, um convênio da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria com uma farmácia lhe permitiu que não arcasse mais com os custos. Ela afirmou, no entanto, que nunca recebeu apoio público para pagar as medicações.
O júri da Kiss será retomado para o quinto dia de trabalho neste domingo (5), a partir das 10h. Estão previstos os depoimentos de Tiago Mutti, ex-dono da boate, e do sobrevivente Delvani Rosso.