Pai de uma das primeiras vítimas do incêndio da boate Kiss a serem identificadas, Ildo Victorio Toniolo, 68 anos, está cansado da luta. Não pretende ir ao julgamento dos acusados pela tragédia que matou 242 pessoas. Diz que sua expectativa quanto aos resultados “não é das melhores”.
— Abri o link de inscrição para um lugar entre os familiares, no júri, e desisti. Só quatro serão julgados. Caso eu pudesse escolher, botava como réus alguns fiscais da prefeitura, alguns bombeiros, o promotor e o prefeito que permitiram que essa boate estivesse aberta — justifica Toniolo.
Técnico em eletrônica, perdeu a filha Leandra, 23 anos, no incêndio. Ela tinha acabado de se formar como técnica em Radiologia e fora encontrar amigas na boate. O pai não gostava que ela ficasse até tarde na rua, mas concordou, relutante.
Aí pelas 4 horas daquela madrugada, amigos dela vieram nos avisar que ela estava desaparecida, na danceteria. Fomos a todos os hospitais, checamos com enfermeiras amigas.
ILDO VICTORIO TONIOLO
Pai de Leandra, que morreu no incêndio
— Afinal, ela era maior de idade e já tinha inclusive uma filha, minha netinha. A Leandra foi e não voltou. Aí pelas 4 horas daquela madrugada, amigos dela vieram nos avisar que ela estava desaparecida, na danceteria. Fomos a todos os hospitais, checamos com enfermeiras amigas — descreve Toniolo, entre lágrimas.
Eram exatamente 7h05min quando, no ginásio, informaram aos familiares que Leandra tinha sido reconhecida entre os mortos. Foi a primeira identificada.
Ele diz que Leandra estava intacta, sem queimaduras, só com um pouco de fuligem no rosto. Foi encontrada no banheiro da Kiss, para onde dezenas de frequentadores da boate correram, em busca de uma saída. As janelas estavam trancadas e muita gente morreu ali, por asfixia ou pisoteamento.
Toniolo e a esposa ficaram com a missão de cuidar da netinha, Eduarda, que na época tinha um ano e três meses. A menina, hoje com 10 anos, alterna a permanência entre eles e os outros avós, paternos.
Leandra não tinha o hábito de ir a boates, comenta Toniolo. Ele acha que a filha nem conhecia a Kiss. Teria ido por insistência de amigas.
— Uma parte de mim se arrepende de ter deixado ela sair. A outra parte, racional, compreende que ela era adulta. Como eu a prenderia em casa? — comenta Toniolo, expondo dúvidas que o assolam há mais de oito anos.
Reflexos
As sequelas emocionais ficaram. O irmão e a irmã de Leandra durante muito tempo fizeram aconselhamento psicológico. Toniolo fala que estão mais calados, perderam parte da alegria, desde a morte de Leandra.
O pai relata que, em mais de oito anos, sonhou apenas uma vez com Leandra.
— Ela surgiu para mim, envolta numa neblina. Estava toda branquinha, pálida. Aí falou: “Pai, vim te dar um abraço” — descreve, em meio a uma crise de choro.
Ouça trecho da entrevista que Toniolo conta o sonho que teve com a filha:
Ao se recobrar, Toniolo começa a descrever suas expectativas em relação ao julgamento, que são pequenas. Ressalta que já dedicou tempo às iniciativas da Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Boate Kiss. Com o passar dos anos, deixou de frequentar as reuniões, por desânimo mesmo quanto a resultados. Acha o trabalho dos familiares fundamental, mas com receptividade menor do que a esperada, de parte do Judiciário.
— Por mim teria uns 25 sentados no banco dos réus. Os responsáveis diretos pelo incêndio pegariam 200 anos de cadeia, sairiam com 30 anos cumpridos. Mas a Justiça é complicada. Receio que tudo seja considerado um acidente e que os acusados peguem meia dúzia de anos de condenação, sem prisão, e a pena substituída por uma cesta básica — analisa Toniolo.
Ele pede que os jurados levem em consideração o fato de que 242 famílias foram destroçadas em suas esperanças. Suas vivências. Seus amores. Aflito, busca uma lembrança, enquanto passa um pano para tirar a poeira acumulada no banner com o rosto da filha. O retrato emoldura a parede de sua oficina, em Santa Maria:
— Agora ficou melhor... Tão linda...parece que tá aí, conosco. E deve estar.