— A Kiss pegou fogo e tem um monte de gente presa lá dentro — disse uma voz ao telefone da unidade do Corpo de Bombeiros em Santa Maria.
Eram 2h15min da madrugada de 27 de janeiro de 2013, e os militares de plantão saltaram da cama correndo. O tenente da reserva Dilmar Antônio Lopes, 55 anos, ainda era sargento quando comandou uma das primeiras viaturas do Corpo de Bombeiros que chegaram na boate. Não era para estar de serviço, mas tinha concordado em substituir um colega que teve um compromisso. Seu turno iria terminar às 8h de domingo, mas então o sino no quartel tocou. Sinal de má notícia. Ele só não imaginava quão ruim era.
Enquanto botava os coturnos, Dilmar lembrou que um dos seus três filhos, o estudante de Enfermagem Matheus, de 20 anos, tinha dito que iria para a Kiss. De imediato, o sargento ligou para o rapaz, diversas vezes. Nada, sem retorno. Bateu o desespero e ele pediu para o caminhão acelerar. Quando chegou na frente da boate, viu uma cena que nunca esqueceu e acha que jamais sairá de sua memória.
Descemos a rua pela contramão e tentamos estacionar, mas não dava. Tinha muitos corpos caídos em frente à boate. Eles saíam correndo da boate e caiam mortos na calçada.
DILMAR ANTÔNIO LOPES
Bombeiro
— Descemos a rua pela contramão e tentamos estacionar, mas não dava. Tinha muitos corpos caídos em frente à boate. Eles saíam correndo da boate e caiam mortos na calçada. Tivemos de arrastar alguns para poder colocar o caminhão junto à porta, para começar apagar o fogo — recorda Dilmar, com lágrimas nos olhos.
Enquanto ajudava a emendar mangueira com mangueira até o tanque do caminhão, para dar o primeiro combate ao fogo, Dilmar lembrou de ligar de novo. O filho continuava sem atender. Fez, então, um apelo aos colegas:
— Se encontrarem meu filho, vejam lá como vão me dar a notícia... — suplicou.
Ouça trecho da entrevista em que Dilmar narra chegada à Kiss:
Saúde
Evangélico, também pediu a Deus para que preservasse a vida do filho e do maior número de pessoas que pudesse, naquela que já antevia como a maior catástrofe da história gaúcha. O fogo era pequeno, mas a fumaça engolfava a todos. Populares e bombeiros fizeram uma corrente para puxar pessoas desmaiadas pela nuvem tóxica que brotava da porta da danceteria. Dilmar e outro colega subiram no teto da boate e, com machados, quebraram o telhado para improvisar uma chaminé. Deu certo. Com o rombo, a fumaceira começou a sair da boate e todos redobraram esforços para ingressar na casa noturna, agora com menos toxicidade.
O cenário era de horror. Corpos caídos sobre corpos, pessoas agonizantes. E nada do filho de Dilmar aparecer. Só quando os últimos mortos eram retirados, por volta das 7h, que o telefonema tão esperado chegou. Matheus, piscava a tela luminosa do celular.
— O que houve? — perguntou o rapaz, que estava jogando videogame com amigos e esqueceu o telefone num carro.
O pai desabou a chorar.
— Chamei ele, disse que a mãe dele estava desesperada. Perguntei em qual hospital ele estava... O Matheus estava perto, na casa de amigos. Veio correndo e ajudou as pessoas intoxicadas, já praticando um pouco do que viria a ser sua profissão — relata Dilmar.
O bombeiro diz que criou alma nova, ganhou energia. Aí trabalhou até as 17h, 10 horas além do previsto. Ficou com sequelas após o serviço. Passou anos tossindo, expelindo um muco negro. Desenvolveu enfisema pulmonar.
— Nunca fumei, mas meus pulmões estavam como os de alguém que fuma por três décadas, me descreveu o médico — lamenta Dilmar.
Apareceu também um nódulo num dos pulmões e Dilmar teve de se preparar para uma cirurgia. Mas não foi necessário. Após muita reza — “coincidência ou não” — o problema desapareceu.
Dilmar colheu também dissabores. Foi um dos oito bombeiros indiciados pela Polícia Civil por, supostamente, ter contribuído para mortes na Kiss ao permitir a entrada de voluntários para fazerem resgate na boate. O indiciamento não progrediu, o caso foi arquivado, mas o bombeiro foi alvo de críticas e hostilidade de familiares de vítimas, durante anos. Teve de fazer tratamento psicológico no Hospital da BM em Porto Alegre, para minorar o sofrimento.
Dilmar se aposentou da carreira militar, após 33 anos como bombeiro. Mas continua trabalhando, com ambulâncias. Com relação ao julgamento da Kiss, vai acompanhar, mas sem grandes torcidas:
— Me coloco no lugar dos pais e peço que Deus ilumine os jurados. Façam o correto, o justo, sem vingança.