Até 2016, Maria Specht conseguia perceber o avanço das águas em sua residência, localizada em uma área ribeirinha de São Sebastião do Caí. Cega após ter o nervo óptico afetado por um glaucoma, a mulher de 52 anos contou com os gritos do filho para juntar algumas peças de roupa e sair de casa às pressas na madrugada de quarta-feira (1º).
Naquele momento, o Rio Caí ultrapassava em dois metros o nível de transbordo, atingindo a parte mais baixa da construção onde ela vive com o pai, também deficiente visual, de 83 anos. Apesar do recuo das águas nesta quinta-feira (2), ela teme seguir o caminho dos vizinhos, que começaram a deixar, no final da manhã, o abrigo montado no ginásio do Centro Integrado Navegantes.
— E se chover de novo? Chove mais dentro da minha casa do que fora — compara Maria, ao pedir doações de telhas novas e brita para o pátio.
O tempo seco, nublado mas sem novas precipitações, permitiu que as 17 famílias — 74 pessoas — escolhessem regressar aos seu lares. Outras 1.150 pessoas, de 350 casas, estão desalojadas no município — moradores que, de alguma forma, acabaram atingidos pelo Rio Caí e procuraram amigos ou parentes, sem auxílio do poder público.
Às 10h, os caminhões da prefeitura reuniram os móveis degradados de parte dos moradores. As charretes perfiladas próximo a quadra de esportes complementavam o cenário. A maioria dos afetados pelo ciclone-bomba no município são catadores que vivem da reciclagem de materiais descartados.
Grávida já com os nove meses de gestação completos, Angelita de Souza, 27 anos, sente falta de casa. Ela temeu que o quarto filho, Anthony, nascesse no abrigo.
— Me preocupa sair de casa assim, quase ganhando, ainda mais com esse vírus — conta, referindo-se a pandemia de coronavírus.
Às 11h, Angelita já estava, ao lado dos pais, de volta à palafita em que vive, na Rua São João — a via recebeu equipes da prefeitura na limpeza da terra empurrada para os terrenos pela força da correnteza.
Dentro do ginásio, o município instalou barreiras físicas, com mesas e cadeiras entre os pertences de cada núcleo familiar. Mesmo com as baixas temperaturas, as janelas basculantes permaneceram abertas. As medidas visam reduzir as chances de contaminações pela covid-19.
Segundo o coordenador municipal da Defesa Civil, Pedro Griebler, todas as pessoas que não possuíam máscaras receberam o acessório. Somente na primeira noite, 50 peças de proteção foram distribuídas. Ainda de acordo com Griebler, todos tiveram a temperatura aferida antes de acessar o prédio, e receberam álcool gel. Grande parte, todavia, não vestia máscaras enquanto a reportagem de GauchaZH circulou na área coberta — as entrevistas foram feitas a distância.
Veneda Sarmento, 57 anos, lista mais de cinco enchentes enfrentadas em um ano — média constante na década, contabiliza a moradora. A última vez que havia saído de casa foi em novembro de 2019.
— A água sobe muito rápido e a gente sempre perde algum dos móveis — lamenta.
Nas ruas, os alagamentos cessaram em quase todos os pontos da cidade, mesmo nas vias construídas ao lado do rio. Com barro espalhado no pátio, Valério Pacheco, 52 anos, teve de negar o chamado de um cliente para a limpeza da casa. A água atingiu 60cm no andar inferior da casa de dois pisos, e o trabalhador da construção civil não pode sair.
— A chuva começa, a água sobe e já vem aquele medo de perder os móveis. Dessa vez, ainda bem, foi pouco — avalia, ao relembrar de enchentes maiores em anos anteriores.
Com os cavalos Princesa e Zaino atados pelo freio, Edair Mota Ramos, 60 anos, explica que os animais ficaram isolados no terreno, antes de poderem ser resgatados. O reciclador foi um dos 1.150 que contou com a ajuda de parentes.
Tomando chimarrão ao lado dos cães, com o leito do rio a sua frente, Plenilda Rühmann, 80 anos, não consegue lembrar há quantas décadas passa pelo sufoco provocado pelas cheias. Ela diz ter criado 10 filhos no local. A casa antiga, porém, foi destruída, e hoje ela vive na companhia dos animais de estimação.
— Graças a Deus, desta vez não chegou. Aqui, sou só eu e Deus — resigna-se
A prefeitura afirma que não foi preciso ir lonas e que não há registro de destelhamentos. Quem quiser permanecer no ginásio, será atendido, reforça o executivo, com a oferta de almoço, jantar e mantimentos para o café da manhã. O temor do município é que a manutenção dos abrigados possa expor os moradores a um possível surto de coronavírus. Segundo a Secretaria Municipal da Saúde, há 87 casos testados positivos para a doença no município, com uma morte confirmada pela covid-19.
Balanço estadual
O boletim da Defesa Civil do Estado divulgado no fim da manhã desta quinta-feira (2) aponta 2.311 pessoas ainda fora de casa no Rio Grande do Sul. São 20 desabrigados a menos do que o balanço anterior e que retornaram para o lar em Erechim, no Norte.
No total, são 2.237 desalojados — que estão em casas de amigos e familiares — e 74 desabrigados. O levantamento ainda considera as famílias afetadas pela cheia em São Sebastião do Caí. Além delas, há outras 520 pessoas fora de casa em Vacaria e 400 em Capão Bonito do Sul, na Serra.
O coordenador da Defesa Civil no Estado, coronel Júlio César Rocha Lopes, diz que boa parte dos moradores deve conseguir retornar para casa ao longo do dia. Coordenadores regionais auxiliam as prefeituras para ver em que casos será necessário decretar emergência.
— Estamos sem vento e sem chuva no Estado, e a maior parte dos rios está com o nível baixando. Isso vai fazer com que a gente consiga voltar à normalidade. Agora vamos focar na ajuda humanitária, levando telha e lona e vendo quais moradores tiveram danos permanentes às residências. Em alguns casos, talvez as prefeituras precisem decretar situação de emergência — diz o coordenador.
Colaborou Bibiana Dihl