"A partir das oito horas da noite, eu disse oito horas da noite, quem estiver na rua de sacanagem ou batendo perna vai receber um corretivo". O recado vem de um carro de som que circula pela Cidade de Deus, primeira comunidade do Rio de Janeiro a confirmar um caso de coronavírus.
A voz mecanizada é uma advertência para as pessoas que "não estão levando a sério e não estão pensando no próximo". Mas não vem de agentes municipais nem estaduais, e sim "da diretoria" do tráfico de drogas que domina a região, como diz o áudio.
Desde o último sábado (21), pipocam nas redes sociais determinações de toques de recolher em favelas cariocas por organizações criminosas, seja tráfico ou milícia. A reportagem confirmou a ordem dada em pelo menos cinco locais: Rocinha, Cantagalo (zona sul), Rio das Pedras, Cidade de Deus (oeste) e Manguinhos (norte).
Segundo moradores ouvidos, que pediram para não ser identificados, desde que houve as orientações, quase todos os bares e estabelecimentos dessas áreas têm fechado as portas à noite, apesar de ainda haver circulação de pessoas que voltam do trabalho, por exemplo.
Nessas comunidades, isso aconteceu antes que começasse a valer a determinação do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) para que os comércios não essenciais fechassem obrigatoriamente, a partir desta terça-feira e por tempo indeterminado.
De acordo com os relatos, os próprios traficantes estão com medo da doença. Primeiro, porque a propagação do vírus nas favelas afetaria os negócios. Segundo, porque eles próprios não poderiam procurar hospitais se fossem contaminados.
Dados da Secretaria Municipal de Saúde mostram que havia 61 "casos prováveis" de coronavírus em comunidades até a última segunda, sendo o da Cidade de Deus o único confirmado. A título de comparação, na segunda-feira eram 212 os casos confirmados na cidade. No dia seguinte, já chegavam a 278.
Na Rocinha, vielas repletas de bares que normalmente ficam cheias — como a Travessa Mesopotâmia, que cruza a principal Via Ápia — estão desertas desde domingo. Um morador que tentou jantar por ali nesta segunda conta que só achou um restaurante de maior porte aberto.
Nesta terça, depois do decreto de Crivella, diversos comerciantes também relataram que policiais militares da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) passaram durante o dia pelas lojas pedindo que encerrassem o expediente.
No Morro do Cantagalo, que fica entre os bairros de Ipanema e Copacabana, uma moradora diz que desde sábado "ninguém sai" a partir das 20h e que os traficantes estão usando máscara e álcool gel para sua própria proteção.
Em Rio das Pedras, bairro dominado pela milícia, a ordem também vale no mesmo horário. Um morador conta que não é permitido ficar na rua, "mas eles não estão batendo em ninguém" e "a maior parte está obedecendo".
Na Cidade de Deus, como cada área tem um "dono", o toque de recolher começou em uma região no domingo e em outra na segunda. Na noite desta terça, por exemplo, num local onde não houve a determinação, até igrejas ainda estavam abertas.
Na favela de Manguinhos, uma moradora conta que o toque de recolher vigora a partir das 22h, quando bares retiram cadeiras e suspendem a música ambiente. A determinação, relata, é repassada por mensageiros dos traficantes aos comerciantes locais.
Outro efeito do coronavírus nas comunidades do Rio tem sido a interrupção do turismo. Desde a última semana, muitas têm proibido tours em suas ruas.
No último dia 16, um guia de turismo abordou a reportagem na entrada do morro Santa Marta, em Botafogo (zona sul), para informar que, por decisão dos guias locais, a favela não estava mais recebendo turistas como forma de prevenção da doença.
No Morro do Vidigal, no Leblon (zona sul), a iniciativa foi da associação de moradores e de líderes comunitários, mas teve o endosso do tráfico.
Na Rocinha, agências de turismo já vêm cancelando visitas há mais tempo. O presidente da associação de moradores, Wallace Pereira, publicou um vídeo nas redes sociais recomendando evitar os passeios, apesar de afirmar que não podia proibir a entrada de turistas.