Cansados da impunidade, pais de vítimas e sobreviventes do incêndio na boate Kiss voltaram a se reunir, na noite deste domingo (26), diante do que restou da antiga casa noturna, em Santa Maria, para exigir justiça. Passados sete anos, nenhum responsável está preso e o julgamento dos quatro réus do caso, previsto para começar em 16 de março, está no centro de um imbróglio jurídico (veja detalhes abaixo).
O incêndio que assombrou o país teve início às 2h30min de 27 de janeiro de 2013 e provocou a morte de 242 jovens. Mais de 600 pessoas conseguiram sair vivas da danceteria, mas muitas delas guardam sequelas irreversíveis.
Organizada pela Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), a vigília em memória dos mortos teve início no fim da noite, em clima de tristeza e indignação. Vestindo camisetas estampadas com fotografias dos filhos, o grupo de cerca de cem pessoas percorreu em silêncio os 450 metros da Praça Saldanha Marinho, no centro, até a Rua dos Andradas.
Em frente à fachada da Kiss, envelhecida e coberta de grafites, pais e mães rezaram e prestaram homenagens. Um coração foi pintado no asfalto e iluminado com velas. Frases como "a impunidade enlouquece" e "a corrupção mata" estamparam camisetas pretas confeccionadas especialmente para a ocasião.
– Não podemos esquecer do que aconteceu. É por isso que estamos aqui, para pedir punições. Essa demora da justiça tem o gosto amargo da injustiça. Não aguentamos mais esperar. O julgamento não vai trazer nossos filhos de volta, mas vai trazer um pouco de alívio – disse Flávio Silva, presidente da entidade.
Muitos pais não compareceram. A comunidade de Santa Maria também não abraçou as famílias como outrora. A fadiga, depois de sete anos, é visível. Para quem segue na associação, a falta de apoio é motivo de incompreensão.
— As pessoas ficaram apáticas. É triste. Eu estou aqui, não só por causa da minha filha, mas porque eu não quero que se repita. E, infelizmente, vai acontecer. Sem punições, vai acontecer — desabafou Ligiane Righi da Silva, mãe de uma das vítimas sepultadas pela Kiss.
A esperança do grupo, segundo Marinês dos Santos Barcellos, que também enterrou um filho em razão do incêndio, é de que a proximidade do júri traga de volta a solidariedade perdida.
— A gente precisa de união. Agora é a hora. Não nos esqueçam — suplicou Marinês.
Nesta segunda-feira (27), a programação preparada pela associação prossegue das 18h às 20h50min na Praça Saldanha Marinho, com rodas de conversa, palestra de Fabrício Carpinejar e homenagem musical.
Quem são os réus e qual é a acusação
– Os réus no processo criminal que apura as circunstâncias do incêndio na boate Kiss são os sócios da casa noturna, Elissandro Spohr, o Kiko, e Mauro Hoffmann, e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos (vocalista) e Luciano Bonilha Leão (ajudante).
– Os quatro respondem a ação penal por 242 homicídios e por 636 tentativas, com dolo eventual (quando se assume o risco de matar).
Entenda as últimas decisões da Justiça
– Em outubro de 2019, o juiz Ulysses Louzada, da 1ª Vara Criminal de Santa Maria, determinou que os quatro réus do caso fossem julgados em Santa Maria, em dois júris, marcados para 16 de março e 27 de abril de 2020.
– Em dezembro, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça (TJ) decidiu que Elissandro Spohr, o Kiko, seria julgado em Porto Alegre, em data a ser definida, atendendo a pedido da defesa. O advogado Jader Marques argumentou que o desaforamento (transferência para outra comarca) evitaria tumultos e garantiria imparcialidade ao júri.
– Na mesma decisão, a 1ª Câmara do TJ definiu que os outros três acusados teriam júri conjunto em Santa Maria.
– Em janeiro deste ano, o juiz Louzada confirmou a data do julgamento dos acusados Luciano Bonilha Leão, Marcelo de Jesus dos Santos e Mauro Hoffmann em 16 de março de 2020. O júri será no Centro de Eventos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), às 10h.
– No mesmo dia, a defesa de Santos pediu para que, como Kiko, ele seja julgado em Porto Alegre. O pedido foi negado em caráter liminar e deve entrar na pauta da 1º Câmara do TJ. Não há data definida.
– Na última terça-feira (21), o Ministério Público entrou com recurso solicitando que Kiko seja julgado em Santa Maria, junto dos outros três réus, mantendo a data prevista (16 de março). O pedido foi feito à 2ª Vice-Presidência do TJ, para que seja remetido ao Superior Tribunal de Justiça.
– Por meio de nota, o advogado de Kiko lamentou o fato e declarou que "a possibilidade de julgamento ainda neste primeiro semestre de 2020 tornou-se impossível".
– Na última quarta-feira (22), foi a defesa de Hoffmann que ingressou junto ao TJ com pedido de desaforamento, negado em caráter liminar. Agora, deve entrar na pauta da 1ª Câmara do TJ. A defesa de Hoffmann também aguarda julgamento do recurso que moveu junto ao STF contra a decisão que levou os réus a júri.