O hospital Nossa Senhora das Graças, o maior de Canoas, não passa apenas por uma crise financeira, mas, também, de credibilidade. Auditorias do Sistema Único de Saúde (SUS) apontam que centenas de próteses ortopédicas foram cobradas sem comprovação de que todo o material descrito nas cirurgias tenha sido efetivamente colocado.
Há suspeita de preços superfaturados e, em alguns casos, de uso de material de qualidade duvidosa. A União cobra do hospital devolução de R$ 3,5 milhões (valores de dois anos atrás), referente a despesas com próteses que foram glosadas (quando o governo decide não pagar pelo serviço).
Dormir, só com analgésico
Desempregada, com serviço eventual de babá, Silene Ferreira dos Passos, 48 anos, não consegue mais exercer a atividade que fazia desde jovem, a faxina, que lhe rendia mais dinheiro do que a atual. A dor na coluna é permanente e não pode mais carregar peso, diz. Tudo seria em decorrência de um desgaste em duas vértebras próximas à cintura.
Silene fez cirurgia para colocação de próteses metálicas na coluna, mas as dores continuaram e houve perda da sensibilidade nas pernas. Conforme ela, os parafusos incomodam, e até carregar criança fica difícil. Mas não vê saída, é o serviço disponível, diz.
Moradora do bairro Vargas, em Sapucaia do Sul, Silene foi operada em 2007 no Hospital Nossa Senhora das Graças, em Canoas. Entre os procedimentos que os cirurgiões cobraram do SUS está a colocação de seis ganchos sulcados, ao custo de R$ 3.660 (em valores de 11 anos atrás).
Mas um raio X realizado por Silene em 2013 não mostra a existência dos seis ganchos. Auditoria do SUS determinou que o hospital devolva o valor cobrado pela prótese inexistente.
Incomodada com a dor constante, que a força a dormir sempre de lado, Silene se inscreveu em 2016 para nova cirurgia na coluna. Ainda não foi chamada.
– E está pior, falta analgésico, que eu pegava de graça no posto de saúde. Agora, tenho de pagar do meu bolso, mesmo desempregada, para diminuir a dor – relata.
Limitação de movimentos
Moradora do bairro Vargas,em Sapucaia do Sul, a aposentada Rosalina Carvalho da Rosa,68 anos, tinha artrite (inflamação nas articulações) e artrose na coluna (desagaste nos ossos). Passou até agora por quatro cirurgias e mal consegue caminhar. Assim como Silene Ferreira dos Passos, fazia faxina (as duas não se conhecem).
— A impressão que tenho é que piorou a cada operação — resume. Na primeira cirurgia, em junho de 2006, no Hospital Nossa Senhora das Graças, em Canoas,os pinos colocados na coluna a frouxaram menos de seis meses após a operação.
Raio X feito em fevereiro de 2008 mostrou que foram cobrados do Sistema Único de Saúde (SUS) seis ganchos sulcados que não aparecem na radiografia.O prejuízo para a Previdência Social, segundo auditoria, foi de R$ 4.880 (valores da época da cirurgia).
Para piorar, sofreu AVC no pós-operatório, mas Rosalina não vê relação entre os casos.As cirurgias seguintes foram em outros hospitais. Na segunda,sofreu parada cardíaca. Sobreviveu,mas nunca parou de sentir dores. Conta que está com muita limitação de movimentos e fica restrita à parte interna da casa.
Rosalina desconfia que o material usado na primeira cirurgia é de má qualidade, já que os parafusos afrouxaram rapidamente. Mas não ingressou na Justiça para tentar comprovar.
Relatório indica utilização de parafuso para pé em coluna
Um dos casos investigados é o de H.F., morador de Canoas, operado da coluna vertebral em abril de 2007. Um raio X feito apedido da auditoria do SUS mostrou que inexistem seis ganchos sulcados que foram cobrados na cirurgia (no valor de R$ 3.660). A prótese de H.F. deu problema. Análise preliminar indica aparência de metalose (infecção provocada por rejeição de material metálico).
O que chamou atenção foi a discrepância entre o número do parafuso constante na Agência Nacional de Vigilância Sanitária — de síntese óssea, sob o número 10171110038 — e os dados descritos pela cirurgia (seis parafusos pediculares, duas hastes longitudinais, enxerto ósseo e seis ganchos sulcados — estes últimos não foram localizados).
"Além disso,consta na AIH (Autorização de Internação Hospitalar) referente ao senhor H. um código de registro na Anvisa de um parafuso para fixação do pé, sendo que a cirurgia foi feita na coluna, com venda e colocação no paciente de produtos para a coluna", descreve relatório da auditoria.
Outro caso é o da dona de casa E.L.F., de Santo Antônio da Patrulha, que fez cirurgia em junho de 2006. Um raio X, feito dois anos depois, mostra inexistência de seis ganchos sulcados cobrados do SUS. A radiografia evidencia que um parafuso do meio, de lado direito, apresenta osteólise (redução da massa óssea). Análise preliminar da auditoria constata que o parafusos e soltou, "possivelmente por uso de material inapropriado".
Dor crônica e desemprego
O vigilante L.M., 42 anos, relata sofrer de dor crônica desde que se operou da coluna no Nossa Senhora das Graças, em 2007. Ele acordou no hospital, após acidente de moto. Apesar de não sentir dor nas costas, médicos indicaram que fizesse um implante metálico para dar sustentação à coluna.
— Alegaram que poderia ficar paraplégico num movimento brusco. Acreditei. Mas não tinha sintomas, estranho — recorda hoje.
O implante foi feito e, desde então,ele não pode carregar peso. Em decorrência, perdeu empregos, conta. Até por isso, prefere não se identificar. Deixou de tocar contrabaixo, sua paixão e um bico para conseguir dinheiro. Radiografia feita em 2015 constatou a inexistência de oito ganchos que os médicos teriam cobrado do SUS. O valor a mais: R$ 4.880.
O que diz a direção do Nossa Senhora das Graças
-Informa que o processo no qual Associação Beneficente Canoas(mantenedora do hospital) contesta a dívida de R$ 3,5 milhões que a União cobra do Nossa Senhora das Graças se encaminha para sentença e a eventual confirmação da cobrança de expressiva soma em dinheiro"impactará significativamente as finanças do hospital, que já opera, por muitos anos, em severo regime de sub custeio".
- A direção da instituição não descarta que possam ter ocorrido fraudes, mas não teriam sido praticadas com conhecimento do hospital. Se ocorreram, acrescenta,foram por responsabilidade de equipes contratadas para cirurgias.-Sobre o pagamento de 200 consultas por mês em neurologia,feito pelo município, o hospital diz que é verdadeiro e que,efetivamente, prestou poucas consultas desse tipo: 40 no primeiro trimestre de 2017.
O diretor administrativo e financeiro do Nossa Senhora das Graças,Francisco Valmor Marques de Avila, diz que, apesar de não realizar as consultas contratadas,o hospital gastou muito mais do que o previsto em exames (raio X e tomografia).
"Ou seja, fizemos consultas amenos e exames a mais. No final,um custo compensa o outro. O contrato, portanto, desenvolve-se em total regularidade", detalha Avila.