A crise que atinge o maior hospital de Canoas, o Nossa Senhora das Graças, não é só financeira, mas, também, de credibilidade. Auditorias do Sistema Único de Saúde (SUS) apontam que centenas de próteses ortopédicas foram cobradas sem comprovação de que todo o material descrito nas cirurgias tenha sido efetivamente colocado.
Há suspeita de preços superfaturados e, em alguns casos, de uso de material de qualidade duvidosa. A União cobra do hospital devolução de R$ 3,5 milhões (valores de dois anos atrás), referente a despesas com próteses que foram glosadas (quando o governo decide não pagar pelo serviço). O hospital admite que possa ter havido fraudes, mas diz não ter culpa se médicos ou outros servidores forjaram parte de cirurgias.
As irregularidades constatadas pela auditoria atingem 243 cirurgias, de um lote de 273 realizadas em dois anos, 2006 e 2007. Ou seja, 89% delas apresentam comprovação inconsistente. Caso o hospital seja obrigado a devolver o dinheiro dessas cirurgias, as dívidas da instituição (hoje em cerca de R$ 130 milhões) vão aumentar.
O problema é que os 243 implantes sob suspeita podem ser apenas a ponta de um iceberg de fraudes, avaliam integrantes do Ministério Público Federal (MPF). Há pedido de auditoria em outros 1,5 mil implantes realizados entre 2008 e 2015, envolvendo cerca de R$ 21 milhões.
GaúchaZH teve acesso a relatório da auditoria das 243 cirurgias suspeitas, feito por três médicos do Departamento Nacional de Auditoria do SUS (Denasus). E ouviu pacientes que sofrem até hoje de dores relativas a implantes cuja qualidade é duvidosa.
Elas são objeto de processo judicial que tramita na 2ª Vara Federal de Canoas. Curiosamente, a ação judicial foi movida pelo próprio hospital (no caso, pela sua mantenedora, a Associação Beneficente Canoas – ABC), para questionar por que o governo federal pôs em dúvida os implantes ortopédicos realizados.
A principal constatação das auditorias do SUS é que não há comprovação para diversos procedimentos cobrados pelos cirurgiões que atuavam no Nossa Senhora das Graças. Radiografias feitas a pedido dos peritos mostraram que várias peças descritas no prontuário dos implantes não aparecem nos exames. Além disso, algumas próteses foram implantadas sem etiqueta de rastreabilidade (que permite verificar a procedência e validade).
“O hospital nos apresentou raio X correspondente a cirurgias em menos de 20% dos casos. Era uma coisa absurda a falta de comprovação radiológica”, descreve um auditor, em depoimento à Justiça Federal. A radiografia no procedimento é obrigatória, conforme o manual da Autorização de Internação Hospitalar (AIH) vigente na época, em 2007.
42 pacientes com mais dores após cirurgias
O MPF conseguiu contatar 72 pacientes, dos 243 cujos implantes não tinham comprovação radiológica. Desses 72, apenas 11 não se queixaram de problemas após a cirurgia. Pior: do total, 42 falaram que sentiam mais dores do que antes da operação.
"Saltava realmente aos olhos a quantidade de cirurgias sem raio X no Nossa Senhora das Graças, pelo número absurdo de não ter a comprovação", relata um dos auditores ouvidos na Justiça Federal. O processo judicial na 2ª Vara Federal de Canoas está próximo de sentença, segundo informações do Judiciário.
O MPF pede para que seja mantida a cobrança pelas cirurgias "não comprovadas", diz o procurador da República Cláudio Terre do Amaral, que lida com o caso. Ele confirma que, fora os 243 implantes sob suspeita, há outros procedimentos, ainda em sigilo, que envolvem o hospital e podem dar origem a processos judiciais por improbidade ou até criminais.
Dormir, só com analgésico
Desempregada, com serviço eventual de babá, Silene Ferreira dos Passos, 48 anos, não consegue mais exercer a atividade que fazia desde jovem, a faxina, que lhe rendia mais dinheiro do que a atual. A dor na coluna é permanente e não pode mais carregar peso, diz. Tudo seria em decorrência de um desgaste em duas vértebras próximas à cintura.
Silene fez cirurgia para colocação de próteses metálicas na coluna, mas as dores continuaram e houve perda da sensibilidade nas pernas. Conforme ela, os parafusos incomodam, e até carregar criança fica difícil. Mas não vê saída, é o serviço disponível, diz.
Moradora do bairro Vargas, em Sapucaia do Sul, Silene foi operada em 2007 no Hospital Nossa Senhora das Graças, em Canoas. Entre os procedimentos que os cirurgiões cobraram do SUS está a colocação de seis ganchos sulcados, ao custo de R$ 3.660 (em valores de 11 anos atrás).
Mas um raio X realizado por Silene em 2013 não mostra a existência dos seis ganchos. Auditoria do SUS determinou que o hospital devolva o valor cobrado pela prótese inexistente.
Incomodada com a dor constante, que a força a dormir sempre de lado, Silene se inscreveu em 2016 para nova cirurgia na coluna. Ainda não foi chamada.
– E está pior, falta analgésico, que eu pegava de graça no posto de saúde. Agora, tenho de pagar do meu bolso, mesmo desempregada, para diminuir a dor – relata.
O que diz a direção do Nossa Senhora das Graças
-Informa que o processo no qual Associação Beneficente Canoas(mantenedora do hospital) contesta a dívida de R$ 3,5 milhões que a União cobra do Nossa Senhora das Graças se encaminha para sentença e a eventual confirmação da cobrança de expressiva soma em dinheiro"impactará significativamente as finanças do hospital, que já opera, por muitos anos, em severo regime de sub custeio".
- A direção da instituição não descarta que possam ter ocorrido fraudes, mas não teriam sido praticadas com conhecimento do hospital. Se ocorreram, acrescenta,foram por responsabilidade de equipes contratadas para cirurgias.-Sobre o pagamento de 200 consultas por mês em neurologia,feito pelo município, o hospital diz que é verdadeiro e que,efetivamente, prestou poucas consultas desse tipo: 40 no primeiro trimestre de 2017.
O diretor administrativo e financeiro do Nossa Senhora das Graças,Francisco Valmor Marques de Avila, diz que, apesar de não realizar as consultas contratadas,o hospital gastou muito mais do que o previsto em exames (raio X e tomografia).
"Ou seja, fizemos consultas amenos e exames a mais. No final,um custo compensa o outro. O contrato, portanto, desenvolve-se em total regularidade", detalha Avila.