Com o rosto apoiado nas mãos sobre a mesa, Luís Eduardo Yeguez, 27 anos, interrompeu o almoço antes de terminar com tudo o que havia na cumbuca de isopor. E o jovem não conseguia esconder as lágrimas.
— É felicidade. Estou agradecendo — resumiu o venezuelano que faz parte do primeiro grupo de 125 imigrantes a desembarcar no Rio Grande do Sul.
No primeiro dia do novo destino, em Esteio, a rotina se alternou em conhecer as regras de convivência, como horário de entrada e saída no alojamento, tarefas de cada abrigado e um giro pelos estandes de serviço público improvisados no saguão de uma igreja, como ser incluído no Cadastro Único e ter a saúde avaliada.
O café da manhã foi doado por uma empresa. O almoço foi a primeira refeição preparada com doações das Forças Armadas. Depois de seis meses em Roraima, onde passou fome e viveu nas ruas por quatro meses, a receptividade dos gaúchos e a comida no prato eram motivo duplo para emocionar Yeguez:
—Impossível não lembrar das minhas duas filhas e da minha mulher, que ficaram na Venezuela. Se elas estão passando fome, como posso comer sem sentir culpa? — conta o cozinheiro, que está há 20 dias sem conseguir falar com a família, já que não tem celular.
Impossível não lembrar das minhas duas filhas e da minha mulher, que ficaram na Venezuela. Se elas estão passando fome, como posso comer sem sentir culpa?
LUÍS EDUARDO YEGUEZ
Migrante
Enquanto o jovem rezava, outro grupo de venezuelanos ouvia salsa pelo smartphone. Alguns iam para a fila do almoço e outros ainda passavam pelos serviços. Entre eles, tradutores e voluntários circulavam entre as mesas ouvindo as histórias de cada migrante e aproveitando para ensinar português.
— Nesse primeiro momento, a ideia não é oferecer aulas tradicionais, mas trabalhar a comunicação, ensinar conversando — afirmou a secretária municipal de Cidadania, Trabalho e Empreendedorismo, Tatiana Tanara.
Sentimento é de retribuir
A camiseta verde do projeto de voluntariado Conta Comigo, com a qual a secretária circulou nos abrigos de Boa Vista e no voo até a capital gaúcha, chamou a atenção dos venezuelanos.
— Muitos deles já manifestaram interesse em serem voluntários. Se ofereceram para pintar algo que seja necessário e até varrer ruas. Eles querem retribuir à cidade que os acolheu —conta Tatiana.
Além de serem expulsos pela crise humanitária do próprio país e se abrigado em Roraima, muitos viveram episódios de xenofobia. Por isso, a recepção com aplausos, moradores buzinando e gritando "bem-vindos" em frente ao alojamento e a atenção dos voluntários são exaltadas.
— Não há palavras para agradecer esse carinho. Já pedi aos meus companheiros de quarto que não cometam crimes, que não façam mal a ninguém —comentou Yeguez.
Além das refeições, três térmicas de 10 litros cada foram servidas com café, água e suco. A de café acabou logo cedo e as voluntárias da Igreja Apostólica Brasil correram para providenciar reposição — uma, duas, três vezes... Coordenadora da força-tarefa e mulher do bispo local, Nara Rejane Lambeth surpreendeu-se com a quantidade de cafeína ingerida. No meio da tarde, um migrante comentou:
— Aqui está muito frio.
Isso que a temperatura subiu durante o dia e passou dos 20ºC. Desacostumados às marcas amenas, a maioria chegou sem casacos ou sapatos fechados. Por isso, a demanda ainda é grande por peças masculinas.
Foco na comunicação e no trabalho
Apesar da dificuldade em se expressar no "portunhol", os venezuelanos estão menos preocupados com o idioma e mais interessados em conseguir se comunicar com familiares e obter vaga de trabalho. O primeiro problema já está sendo solucionado pela prefeitura, que promete conseguir chips de celular para possibilitar ligações. O segundo deve ser encaminhado a partir de segunda-feira, quando começarão a ser feitos os currículos de cada migrante.
— Quero trabalhar para poder trazer logo minha família — comentou Miguel Flores.
Aos 26 anos, o padeiro teve a distância dificultada pela perda de um filho e pelo nascimento de outro. No dia em que se dirigia para o abrigo transitório, onde faria os últimos exames para pegar o voo rumo ao Rio Grande do Sul, soube pelo telefone que o caçula de quatro anos havia morrido por falta de medicamentos na capital Caracas. Pouco antes, sua mulher havia dado a luz depois de passar por vários hospitais fechados e ter tido de pagar por serviços públicos.
Em Esteio, Miguel não está sozinho. O pai, Sixto Miguel Flores, 43 anos, veio também. Ex-empresário, ele tornou-se uma espécie de "faz tudo" em Roraima para poder enviar dinheiro à família. A enxada e outros equipamentos de limpeza adquiridos lá vieram junto com a pequena mala e três ursinhos de pelúcia, simbolizando os oito filhos, quatro deles, na verdade, netos criados por ele.
— Lá (na Venezuela) se trabalha um mês para comer por dois dias. Meus filhos estão pequenos e magros, porque não têm o que comer. Quero e preciso trabalhar, em qualquer coisa, para trazê-los o quanto antes — conta Sixto.
Apesar da saudade das comidas típicas, que misturam feijão e banana, e da temperatura mais amena, ele não cogita voltar ao seu país.
AJUDE
O QUE DOAR: Casacos, calças, abrigos e sapatos fechados masculinos
ONDE: Secretaria de Cidadania, Trabalho e Empreendedorismo de Esteio (Rua Engenheiro Hener de Souza Nunes, 150)