Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze, catorze... Foram 34 mensagens em um intervalo de três anos. As dezenas de tentativas frustradas do ex-senador Eduardo Suplicy de ser recebido por Dilma Rousseff em uma audiência no Palácio do Planalto chegaram a virar piada nas redes sociais. Os obstáculos enfrentados por uma figura tão simbólica do PT para conseguir um encontro com a então presidente, do mesmo partido, tornaram-se mais um exemplo da dificuldade que a líder do Executivo tinha de dialogar com a base aliada e os próprios correligionários. Mas pouco se falou sobre os motivos que levaram o petista a tentar tão insistentemente falar com a presidente.
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Quase três anos depois, em junho de 2016, quando Dilma já estava afastada do cargo e aguardava julgamento do Senado, o ex-senador conseguiu finalmente um pequeno espaço na agenda da presidente e foi recebido em Brasília. Na audiência, de não mais de 40 minutos, a pauta não versou sobre o processo de impeachment que, àquela altura, já corria em estágio avançado no Congresso. A conversa ali era outra: a criação de um grupo de trabalho para implementar a lei da renda básica da cidadania, principal bandeira política do petista. Suplicy tentava salvar o projeto de sua autoria – que prevê a distribuição de uma renda mínima para todos os cidadãos brasileiros –, aprovado pelo Congresso em 2003 e sancionado pelo ex-presidente Lula em janeiro de 2004, de uma espécie de "limbo legislativo", onde ficam leis que nunca entram em vigor. Sem uma regulamentação que indique como devem ser aplicadas – e fiscalizadas –, muitas se convertem em meras pilhas de papel dentro de gavetas ministeriais, esquecidas pelo poder público. Outras tantas ficam anos nessa zona de indefinição antes de receber alguma atenção e serem regulamentadas.
Viável economicamente ou não – a estimativa é que a aplicação da lei proposta por Suplicy custaria pelo menos R$ 240 bilhões por ano ao Tesouro Nacional –, o fato é que o texto passou por todos os rituais democráticos, foi aprovado por unanimidade no Congresso e recebeu a assinatura do então presidente. Custou horas de trabalho de servidores que elaboraram o projeto, de parlamentares que o analisaram nas comissões e de senadores que foram ao plenário votar a lei. Ao abandonar o texto, não só a liturgia democrática é deixada de lado. É dinheiro público jogado fora.
E, sem regulamentação que estabeleça a quantia que será paga a cada cidadão e como será feita a distribuição desse dinheiro, é como se a lei não existisse. Estudioso dos dilemas e contradições brasileiras, o antropólogo Roberto da Matta explica que esse é um tipo diferente de "lei que não pega":
– Muitos acham que a fúria legislativa vai resolver problemas, então, faz-se uma lei para corrigir. Mas quando se faz uma regra que contraria frontalmente aquilo que todo mundo faz ou considera razoável, obviamente vai-se criar uma sociedade de malandros, de criminosos. No caso de leis que ficam nesse limbo, sem regulamentação, é diferente. Entra o que chamamos de vontade política. E vontade política não diz respeito simplesmente a fazer leis.
Roberto Kant de Lima, professor de pós-graduação em ciência política da Universidade Federal Fluminense (UFF), avalia:
– É a saída política perfeita para aquelas bandeiras que têm forte apelo eleitoral e rendem votos. Todo mundo é a favor. Se aprova, gera apelo na mídia, mas se trava o processo logo adiante. No final, não passa de faz de conta à brasileira.
Na Finlândia, a vontade política parece ter sido mais forte. O país anunciou que vai implantar a partir de 2017 um programa bastante semelhante ao proposto por Eduardo Suplicy no Brasil: a distribuição de renda mínima, a ser paga todo mês para todos os habitantes. Contrariando o senso comum, a expectativa do governo é economizar com a medida. Como? Hoje, é necessário um grande número de funcionários públicos para administrar uma complexa rede de programas sociais oferecidos pelo Estado finlandês. A nova regra enterraria todo o sistema burocrático existente para definir se um individuo tem direito ou não a receber esse ou aquele benefício. A proposta será testada em um grupo inicial de 2 mil pessoas até o final de 2019 – quando o governo local apresentará um relatório com os resultados obtidos no projeto.
Dois anos e meio sem fundo de garantia
No Brasil, a demora para regulamentar determinadas leis não se traduz só em descrédito no governo. Manifesta-se como prejuízo direto à população. Um exemplo é a Proposta de Emenda Constitucional 72, popularmente conhecida como "PEC das domésticas". Promulgada em abril de 2013, a lei concedeu a todos os trabalhadores domésticos 16 direitos que já eram garantidos a outras categorias profissionais, como seguro-desemprego, adicional noturno e fundo de garantia. A falta de regulamentação, no entanto, impediu que sete das novas regras, que teriam impacto direto no bolso dos empregados, entrassem em vigor automaticamente.
Na prática, cuidadores de idosos, jardineiros e outros trabalhadores domésticos precisaram aguardar mais dois anos e meio para ter acesso a benefícios a que já deveriam ter direito pela lei. Só em outubro de 2015 o governo disponibilizou aos patrões uma forma de efetuar os pagamentos devidos à Previdência Social.
Olga do Amaral Menezes, 52 anos, sabe bem o peso que essa demora teve. Foi demitida, em agosto de 2015, poucas semanas antes que as novas regras passassem a valer, após 16 anos trabalhando como empregada doméstica na mesma residência. A justificativa dada pela antiga patroa é que não poderia arcar com as despesas impostas pela mudança na lei. Após mais de uma década e meia trabalhando, de segunda a sexta, pegando quatro ônibus por dia, saiu do emprego recebendo apenas o salário do mês, R$ 1,2 mil em valores da época, férias e décimo terceiro proporcional. Nenhum centavo a mais.
Caso a PEC das domésticas tivesse sido regulamentada logo após a promulgação da presidente, Olga teria tido outro tipo de amparo: acesso a cinco parcelas de R$ 1.072 de seguro-desemprego e mais R$ 3,8 mil de FGTS e R$ 1,5 mil equivalente a 40% pela demissão sem justa causa. Valor que faz diferença para quem fica sem trabalho, tem filhos para criar e contas chegando na caixa do correio.
A despeito da taxa de desemprego que não parava de subir no segundo semestre de 2015, Olga conseguiu voltar ao mercado de trabalho logo depois. Por indicação de uma amiga, também doméstica, passou a trabalhar em uma outra casa, por coincidência na mesma rua onde morava a antiga patroa. Ficou lá por 15 meses, até novembro deste ano, quando o atual patrão decidiu que iria morar com a namorada. Esperando a homologação da demissão na fila do sindicato, ela diz estar satisfeita.
– Pode parecer estranho, mas estou contente. Perdi o emprego, mas dessa vez é diferente, vou ter o seguro-desemprego, o fundo de garantia. Parece pouco, mas para mim que trabalhei a vida toda sem receber, é muita coisa. Agora quero saber quanto tempo preciso para me aposentar e poder voltar para Rosário do Sul – afirma, Olga, que há 35 anos mora em Porto Alegre, no bairro Sarandi.
Lei Kandir, de 1996, ainda aguarda regulamentação
O prejuízo pela demora na regulamentação de algumas leis não afeta apenas Olga e os outros 5,9 milhões de brasileiros que trabalham como empregados domésticos. São dezenas de leis que aguardam definição do poder público para passar a valer. Levantamento realizado pela Câmara Federal em novembro deste ano aponta que 28 anos após a promulgação da Constituição, 116 dos 378 dispositivos passíveis de regulamentação ainda não foram regulamentados. São trechos do texto constitucional que pedem expressamente uma lei ordinária ou complementar, que até hoje não veio, para detalhar as regras sobre determinado tema. Em 28 casos, nenhuma proposta foi sequer apresentada até hoje.
Nem Executivo nem Legislativo parecem ter pressa de fazer isso, já que não há regra que estipule um prazo máximo. Em certos casos, o texto do projeto chega a prever uma data limite para regulamentação após sanção do Executivo, mas nada acontece se o vencimento estabelecido for descumprido.
A indicação de uma data máxima pode chegar por vezes pelas mãos do Poder Judiciário, como no caso da Lei Kandir, que há décadas traz impactos para a arrecadação do Rio Grande do Sul e de outros Estados exportadores. Em novembro, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) determinaram ao Congresso que, dentro de 12 meses, regulamente o ressarcimento a unidades federativas como compensação pela desoneração das exportações. Caso os parlamentares estourem o prazo para sanar o que os ministros chamam de "omissão", caberá ao Tribunal de Contas da União (TCU) definir a forma como cada Estado deve ser compensado.
Desde 2003, quando foi aprovada a emenda constitucional 42, governos estaduais aguardam que o Congresso edite lei complementar para definir em que termos as federações serão ressarcidas. Sem norma desde 1996, quando a lei Kandir passou a vigorar, a União repassa para os Estados o quanto acha que deve. O governo gaúcho alega prejuízo de R$ 48 bilhões, se o valor que o Estado deixou de receber nos últimos 20 anos fosse corrigido pelo mesmo indexador do contrato da dívida com a União. Conforme estudo da Receita Estadual, nos 20 anos de vigência da lei sem regulamentação, o Estado teria sido compensado em apenas 20,3% das suas perdas de arrecadação. Só em 2015, a quantia não recebida teria totalizado R$ 3,9 bilhões, valor 974% maior do que os R$ 369,8 milhões repassados pela União no ano.
Se não é suficiente para eliminar o déficit fiscal previsto para 2016 (R$ 6,8 bilhões), a cifra ajudaria a evitar o parcelamento de salários que tanto tem prejudicado servidores do Executivo.
– Já está na Constituição. Não existe dívida não paga ou ilegalidade por parte da União, que aplica um cálculo próprio de ressarcimento justamente no vácuo deixado pelo Legislativo ao longo desse tempo. Não dá para os Estados retomarem essa cobrança do que entendem que deveriam ter recebido. Já foi. O que precisam é de uma lei complementar que defina percentual exato que deve ser pago daqui para frente – afirma o especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental pela Escola Paulista de Direito Daniel Gabrilli de Godoy, reconhecendo que em épocas de ajuste fiscal nas contas públicas, o governo federal não deve fazer esforço para regulamentar o que já deveria estar em vigor se isso significar abrir mão de receitas.
Teto para juro bancário, apenas na Constituição
Outro símbolo de lei que acabou no limbo foi o dispositivo da Constituição que limita cobrança de juro bancário em 12% ao ano. Sem uma lei complementar para regulamentá-la, a norma nunca chegou a ser colocada em prática. Até a mudança na lei – e a revogação do parágrafo que estipulava o teto do juro, em 2003 – o judiciário continuou garantindo aos bancos plena liberdade para atuar no sistema financeiro, aplicando ao mercado a taxa máxima que fosse suportável. Sem regulamentação, foi a Carta Magna que sucumbiu aos juros.
Agora, 13 anos depois de terem retirado da lei o limite de juros, os senadores voltam a discutir o assunto.
No final de novembro, foi aprovado na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) um projeto que freia juros do cartão de crédito a duas vezes a taxa do Certificado de Depósito Interbancário (CDI), os títulos emitidos pelas instituições financeiras e negociados apenas entre elas, atualmente próximo a 14% ao ano. Assim, se o projeto fosse transformado em lei na forma em que está, a taxa anual do crédito rotativo estaria limitada a 28%. Hoje, está em 436% ao ano, maior percentual entre todos os países da América Latina, conforme a Proteste – Associação Brasileira de Defesa do Consumidor. No Peru, segundo colocado no ranking, os juros médios cobrados de quem entra no rotativo do cartão são de 43,7% em 12 meses. O projeto agora segue para o plenário do Senado. A assessoria da Casa não soube confirmar se, ao virar lei, precisará de regulamentação específica.
Se o dispositivo que limita a cobrança de juro tivesse sido colocado em prática, é bem provável que Cláudia Elisa Costa não estivesse tão endividada. A cuidadora, de 53 anos, deve cerca de R$ 5 mil ao banco de uma conta que não passava de R$ 1,2 mil um ano atrás. O aumento no custo de vida e a ajuda dada aos filhos mais novos, que comandam a serralheria da família, no bairro Azenha, deixaram Cláudia no vermelho. Com um juro médio do cheque especial em 324% ao ano, a dívida deu um salto. Se regulamentado o dispositivo que limitava o juro em 12% ao ano, a dívida estaria hoje em aproximadamente R$ 1.350.
Demitida no último mês, a cuidadora não sabe ainda se vai usar o dinheiro recebido da rescisão para abater parte das contas. Isso porque apesar de estar trabalhando nos últimos sete anos, vai receber fundo de garantia referente apenas a um – período em que atuou após a regulamentação dos direitos dos trabalhadores domésticos. A quantia de R$ 1,9 mil a que teve direito é bem menor do que os R$ 7,9 mil recebidos se a regulamentação tivesse saído logo após a promulgação da PEC, ainda em 2013.
– Faz três meses que meu marido morreu de enfisema pulmonar e ainda tenho uma filha menor de idade para sustentar. Vou receber seguro desemprego por um tempo, mas ainda preciso ver como as coisas vão ficar. Preciso achar outro trabalho – afirma Cláudia Elisa.
Dificuldades para cumprir prazo
Não só leis federais acabam no limbo. O impasse também se dá no Rio Grande do Sul, geralmente em projetos de lei de origem parlamentar que o Executivo não tem capacidade para aplicar, explica Thiago Lorenzom, adjunto da subchefia legislativa da Casa Civil:
– Cria-se uma lei e estipula-se um prazo de 30 dias para regulamentação. Aí chega na Casa Civil e percebe-se que o projeto, por mais louvável que seja, é inaplicável. Uma regra que, por exemplo, cria gastos extras para uma secretaria. Ficamos em um dilema: a lei existe, mas a regulamentação fica no ar. Porque no momento em que o Executivo regulamentar a lei, ele puxa para si a responsabilidade de executar a política.
Pôr as normas na geladeira é um processo facilitado pela falta de um mecanismo que permita prorrogar o prazo para regulamentação ou de uma sanção em caso de descumprimento da data limite. Quando o texto do projeto não estipula período máximo para que a regulamentação seja feita ou diz que o Executivo "pode" e não que "deve" regulamentar tal regra, isso fica mais evidente.
– Às vezes acontecem coisas no meio do caminho, identificamos complicações extras no processo de regulamentação e acaba-se extrapolando um pouco o limite. Nem sempre o Executivo consegue fazer na velocidade que gostaria – explica Lorenzom. A Casa Civil não sabe informar quantas leis aguardam regulamentação no Estado.
O caso mais recente foi em outubro, quando o Corpo de Bombeiros deixou de receber novos encaminhamentos de Proteção contra Incêndio (PPCI), além de Planos Simplificados de Prevenção de Incêndio (PSPCI) e Certificados de Licenciamento do Corpo de Bombeiros (CLCB), alegando falta de decreto que regulamentasse as mudanças na Lei Kiss. As alterações, que agilizam a liberação de alvarás para casos de baixo e médio risco, foram aprovadas em agosto pela Assembleia Legislativa, e sancionadas em setembro pelo governador José Ivo Sartori.
Dessa vez, a espera não foi tão longa: o decreto foi publicado em novembro.
NA CONSTITUIÇÃO
Todos os dispositivos passíveis de regulamentação = 378
Dispositivos já regulamentados = 262
Dispositivos não-regulamentados = 116
Sem proposições apresentadas = 28
Com proposições apresentadas = 88