Passados mais de dois anos de uma decisão judicial que mandou um paciente de 42 anos ser internado em uma Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) no Hospital São Francisco de Assis, em Santa Maria, por não haver vaga no Hospital Universitário de Santa Maria (Husm), o Estado e o hospital travam uma batalha paralela na Justiça quanto aos valores cobrados por todo o tratamento. O homem ficou internado por 110 dias, depois de ter caído de uma altura de oito metros e ter múltiplas fraturas, inclusive no crânio, e precisou passar por pelo menos duas cirurgias de alta complexidade, necessitando também da colocação de próteses. A conta é de quase meio milhão de reais: R$ 487.779,32. A Procuradoria-Geral do Estado (PGE) acusa o hospital de superfaturar medicamentos e materiais hospitalares. A instituição diz que não superfaturou e que houve abuso do Estado.
Na última decisão sobre o caso, que tramita na Justiça Federal, já que a União também é ré (o processo original é o pedido de leito para o paciente), o juiz Gustavo Chies Cignachi, da subseção de Santa Maria, disse que há "indícios claros e evidentes de superfaturamento" e que "a cobrança de valores superfaturados de insumos e medicamentos pelo Hospital São Francisco, além de configurar ato claramente imoral e digno de censura, desobedece as normativas legais e administrativas sobre a questão, podendo resultar, inclusive, em responsabilização criminal, bem como ofende a dignidade da Justiça e a boa fé processual".
Na mesma decisão, o magistrado deu vistas do caso ao Ministério Público Federal, que instaurou uma ação civil pública para apurar a conduta do hospital. Além disso, intimou o hospital a apresentar nova conta em até 15 dias, sob pena de perda do direito de ressarcimento de eventual saldo ainda devido. Como reconheceu má-fé do hospital, o juiz também determinou multa ao hospital, que deverá pagar, à União e ao Estado, 20% do valor inicial da ação, que era de R$ 60 mil.
– Como é dinheiro público, temos que sindicar essa conta, ver se ela está no limite do razoável. Descumpriu-se a determinação da Anvisa e colocou-se lucro em cima dos insumos. Hospital não é farmácia, ele não pode comprar uma seringa por R$ 1 e vender por R$ 10, tem que vender por R$ 1. Dei a chance a eles de fazer uma nova conta respeitando os valores. Se não me apresentarem uma conta correta, eu não pago nada. O Estado comprovou que foi colocado um valor muito além – reforça o juiz.
Conforme um dos procuradores da 5ª Procuradoria Regional de Santa Maria que atua no caso, Carlos Henrique Gomes, há itens que estão superfaturados em mais de 2 mil por cento. Ele exemplifica comparando preços que estariam em notas de empresas que venderam os produtos para o Hospital São Francisco com o valor apresentado na conta para o Estado. Uma dieta teria sido adquirida por R$ 23 a unidade e cobrada por R$ 707. Como foram utilizadas 19 unidades, no final, o custo foi de mais de R$ 13 mil. No caso dessa internação, o procurador estima que, por baixo, o valor superfaturado supere os R$ 50 mil.
– Não temos um cálculo porque pedimos que o juiz autorizasse juntarmos essa documentação no processo e que o hospital refizesse essa conta. Mas posso garantir que é coisa de milhares de reais – afirma o procurador.
Sefas nega superfaturamento e diz que houve abuso
O principal ponto sustentado pelos procuradores do Estado é que existe a Lei nº 5.991/73 e a orientação Interpretativa nº 5, de 12 de novembro de 2009, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que impedem que hospitais lucrem com medicamentos. As instituições hospitalares podem apenas pedir o reembolso do valor. A advogada da Associação Franciscana de Assistência à Saúde (Sefas) – que administra o hospital São Francisco de Assis –, Andrea Markus, afirma que não houve superfaturamento. Ela também acusa o Estado de abuso de poder e quebra de sigilo fiscal, por ter juntado ao processo notas fiscais de compras realizadas pela instituição.
– Vamos entrar com uma medida no Tribunal Regional Federal para reverter essa decisão. O juiz se baseou em documentos que o Estado juntou, mas ele não nos deu vista desses documentos e não deu prazo para nos manifestar, desrespeitando o contraditório e a ampla defesa. Somado a isso, algumas notas fiscais eram do Hospital São Francisco e outras de outros hospitais da Sefas. O que o Estado acabou fazendo com isso foi abuso de autoridade, quebrando sigilo fiscal de outras entidades nossa sem autorização – reclama a advogada.
Além disso, a defensora afirma que há uma norma de 2010, também da Anvisa, que autoriza os hospitais a acrescentarem um percentual em cima dos medicamentos, já que há custos com frete, impostos e também para mantê-los.
– Existe uma tabela que é utilizada por todos os hospitais. Quando for medicamento restrito, usa-se o preço do fabricante e um percentual. Quando for medicamento não restrito, usa-se o preço máximo ao consumidor. Eles querem alegar que temos que comprar o medicamento por X e vender pelo mesmo X – ressalta.
A advogada diz que tem até o dia 15 de junho para responder. Ela acrescenta que o Estado deve cerca de R$ 4 milhões ao Hospital São Francisco por conta de internações via Justiça.