Quando meu pai morreu, há exatos 15 anos, pensei em registrar cada história que lembrava dele para que nada se perdesse. Seria como uma coleção de retratos, uma cápsula do tempo para legar a netos e bisnetos - os encarregados involuntários da missão de transportar seu nome, genes e memórias para o futuro.
Redigi mentalmente muitos inícios diferentes. Começaria na infância, nas lembranças mais antigas, os cílios dele roçando nos meus no delicioso "beijo de olhinho" que eu repetiria mil vezes, anos depois, com a minha própria filha? Ou tentaria reinterpretá-lo, como adulta? Como conciliar o olhar da infância com a perspectiva da maturidade? E o que eu realmente sabia sobre meu pai? O que um filho, qualquer filho, pode dizer sobre o pai sem falar ao mesmo tempo sobre si mesmo?
O grande acontecimento literário do ano, nos EUA, é um livro que traz à superfície algumas dessas questões. Lançado na última semana, Go Set a Watchman, da escritora Harper Lee, 89 anos, retoma os personagens e o cenário de To Kill a Mockingbird (no Brasil, O Sol é para Todos). Escrito na mesma época, provavelmente antes, esse novo romance autobiográfico tanto pode ser lido como uma versão inicial do texto publicado quanto como um desdobramento da história narrada no best-seller de 1960 - em To Kill a Mockingbird, a narradora é uma menina, Scout (apelido dado pelo pai), personagem que em Go Set a Watchman é a jovem Jean Louise, que retorna já adulta para a cidade natal, Maycomb, onde revê o mundo da infância, o pai inclusive, de forma totalmente diferente. O que chocou os leitores americanos foi o desmonte da figura heroica de Atticus Finch. O pai honrado e corajoso do primeiro livro, que aceita defender um negro de uma acusação de estupro, nos anos 30, mesmo enfrentando ameaças e o preconceito da pequena cidade, torna-se um velho acuado e racista.
Qual o verdadeiro Atticus Finch? O do livro que Harper Lee escolheu lançar ou este outro, que chega aos leitores quando já há dúvidas de que a autora desejava publicá-lo? O Atticus que aprendemos a amar (no cinema, com o rosto e a fortaleza moral de um Gregory Peck) fez sucesso exatamente porque todos nós, adultos e crianças, precisamos construir heróis para admirar? É possível amar sem admiração incondicional? Seremos cínicos demais, em 2015, para acreditar em homens 100% íntegros? Todas essas dúvidas devem permanecer, a partir de agora, atreladas para sempre aos dois livros que Harper Lee escreveu.
Não redigi o tal retrato definitivo do meu pai. Talvez escreva um dia - não o relato definitivo, mas o possível. O certo é que a imagem que tenho dele não ficou congelada naquela manhã fria de julho em que nos despedimos com um beijo carinhoso, mas sem solenidade, como se fosse uma terça-feira qualquer de inverno e não a última vez em que nos veríamos. A memória do meu pai permanece e muda o tempo todo comigo - como a imagem do meu próprio rosto no espelho.