Você pode até ter ouvido falar de um projeto que altera o cálculo da meta fiscal do Brasil, mas fez cara de interrogação quando alguém citou um tal de superávit primário, e até agora não entendeu por que a votação "de um texto-base que traz mudanças à Lei de Diretrizes Orçamentárias" causou tanto alvoroço no Congresso - é, teve gás lacrimogênio, soco, gritaria e o músico Lobão protestando na portaria do palácio.
O tom de "espetáculo" (mais: uma aposentada levou uma gravata no pescoço e uma rasteira de seguranças) marcou a discussão do assunto, mas não é só por isso que o tema merece destaque. É também, e sobretudo, porque a revisão do resultado da meta fiscal - aprovada, após 18h de sessão, no fim da madrugada desta quinta-feira -, pode influenciar as contas do país e ter impacto na vida de todos os brasileiros.
Zero Hora conversou com especialistas e traz o que você não pode deixar de saber sobre o projeto de lei 36/2014.
O superávit primário
Primeira constatação: é um nome muito complicado. Pela legislação, o governo é obrigado a fazer uma poupança para pagar os juros da dívida pública e, assim, cumprir a chamada meta fiscal. Essa poupança é o famoso superávit primário, uma tentativa do governo de evitar pagar juros sobre juros e a dívida cresça sozinha. É o que deve "sobrar" nas contas do governo depois que ele paga todas as suas despesas, a não ser os juros da dívida pública. Superávit primário: uma economia para pagar juros.
O que diz a lei sobre o superávit primário?
A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2014, quando formulada, estabelecia o valor mínimo de R$ 116,1 bilhões de superávit primário, ou 3,1% do Produto Interno Bruto (PIB). Desse valor, o governo poderia descontar até R$ 67 bilhões para serem usados no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), reduzindo a economia a R$ 49,1 bilhões (valor reservado ao pagamento dos juros da dívida). Essa meta já havia sido reduzida meses atrás para cerca de R$ 80 bilhões.
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O que muda com o projeto de lei 36/2014?
O projeto de lei 36/2014, que teve o texto-base aprovado pelo Congresso nesta quinta-feira, altera o desconto determinado na LDO. Ou seja, o governo ganha a permissão de abater dos R$ 116,1 bilhões todos os gastos que tiver com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e o que deixou de ganhar no último ano com a redução de impostos.
Neste ano, entre janeiro e outubro, estas despesas chegaram a R$ 127 bilhões. E devem aumentar até o fim de 2014. Com a alteração da lei, o governo tem a permissão de retirar todo o dinheiro desse "cofrinho" de R$ 116,1 bilhões (abater toda a meta, como dizem os especialistas) e ainda pular ondas no Reveillon (fechar o ano) sem descumprir a lei. Em resumo: não tem mais meta.
Por que o Executivo encaminhou o projeto de lei para o Congresso?
No fim de outubro o secretário do Tesouro Nacional admitiu que o governo não conseguirá cumprir a meta do superávit primário deste ano e informou que um projeto de lei iria tentar alterar a meta da LDO. De acordo com Antonio Corrêa de Lacerda, economista e professor de Economia Política na PUCSP, ao solicitar um aval para o Congresso, é como se o governo pedisse um "perdão" por não ter cumprido a meta de economizar o valor que deveria.
Os favoráveis alegam que o projeto tem como objetivo evitar que o governo tenha que fazer cortes radicais em todas as áreas e programas para alcançar a poupança prevista inicialmente.
O que dizem os contrários?
A oposição considera que a revisão da meta fiscal compromete a credibilidade da economia brasileira com investidores internacionais. Uma relação que o professor de Finanças da FGV-SP Samy Dana traduz assim:
- É como se você (investidores internacionais) tivesse um namorado (Brasil) que se comprometeu em ser fiel, mas lhe traiu. Você pode dar uma segunda chance para ele, mas ficará com um pé atrás: e se ele não cumprir de novo?
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"E eu com isso?"
Com o possível impacto na credibilidade do Brasil, pode ser que credores confiem menos no país, e a economia brasileira passe a receber menos financiamento. Além disso, conforme explica Dana, a redução da entrada de dólares no país pode afetar o câmbio, levando à subida do dólar.
Ao não cumprir a meta de superávit primário o governo fica mais endividado e é obrigado a aumentar a taxa de juros para conseguir captar recursos com investidores. Acontece que ao aumentar a taxa de juros para conseguir pegar dinheiro emprestado, toda a população é afetada. Fica mais caro conseguir empréstimo no banco, financiar a casa própria ou carro.
Mas especialistas divergem em relação ao tamanho do impacto e o tempo que ele levará para chegar. Para Lacerda, a alteração no cálculo da meta fiscal não terá um impacto relevante na economia brasileira, muito menos na vida da população.
- Não vejo que isso irá afetar negativamente a imagem do Brasil. É uma forma de evitar uma situação desconfortável para o governo e permitir que agora se olhe para frente. Continua o desafio de mudar mais amplamente a questão fiscal.
Já Samy Dana acredita que a credibilidade do país pode ser afetada e explica os possíveis reflexos na vida do brasileiro:
- O cidadão pode sentir. As empresas talvez tenham mais dificuldade para gerar negócio, e pode aumentar o desemprego. Pode ser que o país tenha menos renda, e as coisas fiquem mais caras - o dólar mais caro impacta na inflação. É uma série de consequências indiretas que podem ser sentidas pelo consumidor, pelo cidadão comum - afirma Dana.
Assista o momento do protesto em frente ao Congresso:
ZH Explica
Qual o impacto da mudança na regra do superávit primário na sua vida
Alteração no cálculo da meta fiscal foi aprovada pelo Congresso nesta quinta-feira
Bruna Scirea
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