Com mais tempo livre do que o habitual devido à suspensão das aulas, Tatiana Luft, professora de histologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), incorporou uma iniciativa social em sua rotina na pandemia. Desde abril, prepara, duas vezes por semana, 20 quentinhas que alimentam moradores de comunidades vulneráveis de Porto Alegre.
Na última quinta-feira (25), o cardápio incluiu massa, carne de frango moída e um Bis, acomodados em marmitas de alumínio – na tampa, ainda desenhou um coração. Pouco depois das 18h, as refeições foram recolhidas por voluntários da ONG Misturaí e, à noite, distribuídas em uma vila do bairro Bom Jesus, na zona leste da cidade.
– Há muitas maneiras de contribuir. Se não quiser cozinhar, pode doar uma quantia em dinheiro. E, se não tiver dinheiro, pode entregar a comida para as pessoas – conta Tatiana.
Pela ação, que, segundo ela, consome seis horas de sua semana e R$ 100 de seu orçamento, a professora incluiu-se na corrente de solidariedade que despontou em meio à crise do coronavírus. A própria ONG à qual se uniu é um sintoma da rede de empatia multiplicada pela pandemia: as doações à Misturaí, nos últimos três meses, foram 10 vezes maiores do que o usual.
– Para mim, as pessoas estão sendo mais solidárias por uma questão altruísta e outra idealista. Primeiro, porque perceberam que há muita gente vulnerável, que, em uma crise, fica ainda mais vulnerável. Segundo, porque o isolamento mostrou que o nosso pequeno núcleo é muito pouco para sermos felizes. A vida ganha muito mais sentido quando se ajuda o outro – diz Gabriel Goldmeier, fundador da ONG.
A Misturaí está prestes a bater a meta de 45 mil quentinhas distribuídas a 10 comunidades pobres da Capital, preparadas por 200 voluntários, incluindo Tatiana. Longe de serem isoladas, boas iniciativas manifestam-se em todos os campos à medida que a covid-19 se espalha pelo país. A dúvida, agora, é se o movimento sobreviverá na mesma intensidade no pós-coronavírus.
Ainda no início da pandemia, em março, o historiador israelense Yuval Noah Harari, autor do best-seller Sapiens: uma breve história da humanidade, escreveu um artigo que levantou algumas hipóteses. Para ele, há apenas duas maneiras de superar a crise – seguindo o caminho da desunião ou buscando a solidariedade global.
A primeira, afirma Harari, causará catástrofes mundiais ainda mais dramáticas. Já a segunda representará uma vitória contra o coronavírus e quaisquer outros desafios que a sociedade enfrente neste século. São essas duas correntes que, neste momento, dividem estudiosos, dos mais aos menos otimistas.
– Temos, basicamente, essas duas saídas, que ainda são bastante incipientes. Iremos aprender que a solidariedade é um valor que pode nos apontar para um bem-estar coletivo ou iremos para o outro lado, do salve-se quem puder. Ainda não sabemos qual caminho a humanidade seguirá – analisa Simone Paulon, professora do Programa de Pós-Graduação de Psicologia Social e Institucional da UFRGS.
Simone, ao lado de outras nove colegas e alunas da universidade, desenvolveu durante a pandemia um programa de atendimento gratuito a mulheres em situação de violência. Pela rede de apoio que assistiu nascer dali, aposta, no futuro, no recuo do individualismo como legado da crise.
– Estamos aprendendo, na marra, que a felicidade não é um valor privado que se dá no âmbito do seu umbigo. Isso se tornou incontornável nesses tempos que vivemos – complementa.
Em seu site, a Associação Brasileira de Captadores de Recursos tem dado números à solidariedade no país. O Monitor das Doações Covid-19 marca, até o momento, R$ 5,7 bilhões doados por mais de 400 mil pessoas físicas e jurídicas. Esse senso de necessidade de apoio mútuo, característico de momentos de catástrofe, tem motivações sociais, humanitárias, espirituais e até mesmo psicológicas.
É o que aponta Inês Amaro, professora de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Embora reconheça a relevância dessas práticas filantrópicas para fazer frente às vulnerabilidades escancaradas pela pandemia, admite ser difícil que se mantenham à medida que a rotina retorne à normalidade.
– Boa parte dessas iniciativas tende a se diluir quando passar esse período mais crítico. Muitas delas são bem pontuais, da emoção do momento, diante de um fenômeno emergencial. A força do status quo é muito grande, não se muda uma cultura inteira apenas a partir de uma crise – afirma Inês.
O sociólogo Claudio Dantas, do Escritório de Tendências, menciona sinais contraditórios para analisar a sobrevivência dessa rede que busca minimizar danos diante da pandemia. Para ele, as iniciativas têm partido mais do nível dos indivíduos, enquanto países, por exemplo, incorrem em disputas por insumos médicos.
– Aí, é o bom e velho jargão: "Farinha pouca, meu pirão primeiro" – diz Dantas. – No comportamento, as mudanças não se dão do dia para a noite ou por causa de uma pandemia. Precisa bem mais do que isso. Frequentemente, falamos em termos de gerações para vermos uma transformação profunda de comportamentos que são realmente enraizados.
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