O espírito olímpico transcende a excelência esportiva. O olimpismo, filosofia criada para difundir os ideais olímpicos, vai muito além na busca entre o equilíbrio da mente e do corpo. Carrega valores como amizade, compreensão mútua, igualdade, fair play e solidariedade. Em 2024, os clubes gaúchos uniram os dois aspectos que englobam os ideais das Olimpíadas. Além de darem continuidade ao papel de formadores de atletas de elite, criaram um cinturão solidário para ajudar as vítimas da enchente de maio.
Três agremiações gaúchas terão representantes em Paris. Sogipa e Grêmio Náutico União (GNU) terão nove atletas representando o Brasil. O Jangadeiros será representado por um velejador. Em mais um ciclo, o trio reforça suas raízes de pujantes clubes formadores.
Do trio, o GNU foi o primeiro a ter um atleta olímpico, com quatro remadores em Roma 1960. Em 2024, será representado pelos esgrimistas Guilherme Toldo, em sua quarta Olimpíada, e Mariana Pistoia e pela nadadora de maratona aquática Viviane Jungblut. Em outras 12 edições dos Jogos, o GNU contou com pelo menos um competidor. Nos últimos ciclos, também se solidificou como uma potência paralímpica.
— Todo mundo tem chance de medalha. O Guilherme Toldo é o mais experiente deles, está na quarta Olimpíada. Na última vez, ele ficou com a melhor posição dele, acho que foi nas oitavas de final. Então, todo mundo tem chance. Tudo é uma questão de momento, de estar naquele dia bem inspirado, com uma moral alta e com treinamento adequado — explica Paulo Bing, presidente do União.
Além da esgrima, da maratona aquática e do remo, o GNU já enviou para o maior evento esportivo atletas do vôlei, basquete, natação e ginástica artística.
A Sogipa debutou em Olimpíadas em 1988. Nesses 36 anos de experiência olímpica, somente em 2004 um sogipano não fez parte da delegação brasileira. A galeria do clube conta com seis medalhas olímpicas, todas no judô. Todas de bronze. Três com Mayra Aguiar, uma com Felipe Kitadai e Daniel Cargnin e outra com Tiago Camilo — além de títulos mundiais com Mayra e João Derly.
O nome de Camilo tem uma peculiaridade dos demais medalhistas. Paulista, faz parte de uma política do clube de contratar destaques de algumas modalidades. Nomes como o tenista Fernando Meligeni e a judoca Ketleyn Quadros, bronze em Pequim 2008.
Junto com Mayra, Cargnin, Rafael Macedo e Leonardo Gonçalves, Ketleyn forma o quinteto de judocas sogipanos que estarão em Paris. Além deles, o saltador Almir Júnior tem o passaporte em mãos para o embarque. Esgrima e tiro com arco são outras modalidades dos Jogos que contaram com a classificação de sogipanos no passado.
— Ao longo deste período, classificamos atletas em várias modalidades e conquistamos seis medalhas, um feito incrível. Acreditamos que temos condições não apenas de realizar uma boa participação, representando as cores do Brasil, mas também de conquistar ao menos mais uma medalha para levar alegria ao povo gaúcho neste momento desafiador para o Rio Grande do Sul — explica Marco Doval, vice-presidente de esportes do clube.
O Jangadeiros também é veterano olímpico. Os velejadores do clube estrearam nos Jogos em 1976, em Montreal. O auge foi com Fernanda Oliveira, que conquistou a medalha de bronze em Pequim 2008. Para Paris, Gabriel Simões garantiu a classificação na classe 49er.
Nova rotina de atletas às vésperas dos Jogos
Os três clubes utilizaram suas estruturas esportivas para ajudar os flagelados da enchente de maio. Atletas das mais diferenciadas modalidades, ginastas, remadores, judocas, o pessoal do atletismo, jogadores de futebol, surfistas, prestaram assistência. O importante é competir se transformou em o importante é ser solidário.
Caso de Piedro Tuchtenhagen, do Grêmio Náutico União (GNU), e Evaldo Becker, do Flamengo. O calendário apontava que maio era o mês em que a dupla de remadores no skiff duplo peso leve tentaria a classificação para as Olimpíadas de 2024. Era a última chance, não só para Paris, mas de disputar os Jogos. A partir de 2028, a prova sairá do programa olímpico. Apesar da situação, remaram pelas ruas de Porto Alegre.
— Decidimos que não era viável sair daqui. Nos primeiros dias, conversamos que não poderíamos ficar de braços cruzados. Fomos para a água ajudar em resgates. Uma loucura, algo que jamais imaginava. Foi uma decisão de coração — relata Evaldo.
O Comitê Olímpico do Brasil solicitou ao Comitê Olímpico Internacional e à World Rowing, a federação internacional de remo, que a dupla recebesse convite para competir no Estádio Náutico Vaires-sur-Marne, em Paris. Uma resposta oficial ainda não foi emitida.
Sábado, 4 de maio, primeiro fim de semana de enchente em Porto Alegre. Quem chegava na sede sede Moinhos de Vento do GNU para deixar doações era recebido por atletas e ex-atletas do clube. Eles ajudam na triagem dos donativos que seriam encaminhados aos desabrigados que ganhariam proteção no ginásio da agremiação.
— Eu ia viajar no domingo para as seletivas de piscina. Fiquei treinando em Porto Alegre. A nossa rotina não estava normal. Dividia a rotina de treinos com a rotina de ser voluntária — Viviane Jungblut, explica a nadadora que disputará a prova da maratona aquática em Paris nas águas do Sena.
O clube recebeu cerca de 300 desabrigados e 40 pets, além de ceder uma embarcação para ajudar nos resgates. A sede da Ilha do Pavão ficou submersa.
— Foi um dos momentos mais bonitos que eu vi na minha vida. De ver a bondade e o acolhimento do povo gaúcho, do nosso associado, dos nossos atletas, técnicos, que quando viram aquela operação acontecendo, se dirigiram ao clube para se voluntariar em diversas atividades, para colaborar como médico, colaborar como enfermeiro, colaborar como veterinário, colaborar — destaca o presidente do GNU.
A poucos quilômetros dali, a Sogipa se movimentou na mesma direção. O clube serviu de refúgio para cerca de 470 pessoas afetadas pela enchente e mais 60 animais de estimação. A nova realidade mudou o cotidiano da sede. Eventos e os treinos das escolas de esportes e das equipes de formação foram interrompidos por duas semanas.
— A Sogipa teve a ajuda de centenas de voluntários, inclusive não associados, acolheu, alimentou e ofereceu assistência e atendimento médico para centenas de pessoas atingidas pelas cheias. Graças ao esforço das comissões técnicas, os treinos para as equipes de alto rendimento, especialmente os atletas se preparando para os Jogos Olímpicos, foram mantidos. Aqueles que se sentiram aptos puderam treinar, com condições adequadas fornecidas — relata Marco Doval, vice-presidente de esportes do clube.
Clubes estritamente náuticos também foram protagonistas. Embarcações dos Jangadeiros realizaram cerca de 2 mil resgates nos primeiros dias de enchente, mesmo que parte da sede do clube tenha sofrido forte avaria.
— Por ocasião das enchentes que vivemos, muitos de nossos associados e atletas atuaram como voluntários nos resgates e em outras frentes. Ainda que em meio a um momento de tanta tristeza, muito nos orgulha ver que a formação de nossos atletas é integral: não se trata apenas de estar pronto para uma Olimpíada, para competir com alto rendimento, mas de um espírito de união, integração e socialização que é ensinada desde os cursos de vela com as crianças — afirma o comodoro do Clube dos Jangadeiros, Cristiano Tatsch.
Os barcos do Veleiros do Sul foram agentes importantes em resgates na Ilha da Pintada, ajudando no translado de famílias inteiras que estavam ilhadas. Também contribuíram no transporte e distribuição de alimentos.
— A frota de barcos de apoio esportivo foi severamente afetada, já que são embarcações não adequadas para uso em áreas internas e com obstáculos. Os botes infláveis iam se estragando e sendo consertados durante a noite mesmo, para voltarem à operação no dia seguinte. Os atletas também estiveram engajados no suporte à população durante a enchente, ajudando com doações e até mesmo em água, integrando as equipes de resgates — explica Frederico Roth, comodoro do Veleiros.
Antes mesmo da abertura dos Jogos de Paris, o esporte gaúcho carrega no peito a medalha de ouro da solidariedade.