Está na cartilha básica de qualquer coach de prestígio: para dar saltos na carreira e alcançar objetivos, muitas vezes é preciso deixar as zonas de confortos para trás. Depois de adotar esse mantra consagrado no ambiente corporativo, a gaúcha Rochele Nunes se aproximou do sonho de estrear em Olimpíada – e aos 31 anos, idade que terá em julho de 2020, quando a pira for acesa em Tóquio.
Mesmo integrando um clube que virou referência no judô e a seleção brasileira havia quase uma década, a então atleta da Sogipa decidiu seguir novo rumo em abril de 2018. Em um treinamento organizado pela confederação brasileira em Pindamonhangaba (RJ), com a participação de judocas estrangeiros, Rochele recebeu a primeira sondagem para defender a bandeira de Portugal.
A porta-voz do convite informal foi ninguém menos do que Telma Monteiro, uma das maiores ídolos do esporte lusitano, dona de cinco medalhas em Mundiais e de bronze na categoria até 57kg nos Jogos do Rio 2016.
A semente plantada não demorou a germinar. Em julho, a peso pesado visitou as instalações do Benfica, seu novo clube, e recebeu a proposta oficial da federação de judô e do comitê olímpico portugueses. Um mês depois, já havia se mudado para Lisboa. No fim do ano passado, o processo de naturalização foi concluído, e ela ficou apta a representar o novo país em competições internacionais.
Os resultados nos tatames comprovaram o acerto da decisão. Nesta temporada, a judoca nascida em Pelotas e criada em Canoas já conquistou dois bronzes em eventos de Grand Slam (igualando o desempenho pelo Brasil entre 2009 e 2018) e três medalhas (uma prata e dois bronzes) em torneios de Grand Prix – pela seleção brasileira, contabiliza apenas um bronze, de 2014.
As duas medalhas nos Grand Slams, por sinal, revelam por que a gaúcha não hesitou em trocar de passaporte. Tanto em Ekaterimburgo, em março, quanto em Brasília, em outubro, Rochele dividiu o espaço no pódio com Maria Suelen Altheman e Beatriz Souza, agora suas ex-concorrentes à única vaga olímpica por país na categoria.
Corrida olímpica
No ranking que definirá a classificação para os Jogos, Maria Suelen é número 3 do mundo, e Bia está em quinto lugar. Mas nenhuma das duas está garantida em Tóquio, e provavelmente a definição só ocorrerá às vésperas do evento. Já Rochele é a 11ª colocada da lista. Só que, sem rivais fortes em Portugal e com boa margem de pontos para a última judoca hoje qualificada, está com a vaga praticamente assegurada mesmo a oito meses da Olimpíada.
O novo patamar atingido no circuito elevou a confiança da gaúcha de 1m69cm e 116kg, que já fala até em pódio nos Jogos.
– Minha autoestima aumentou. No Brasil, a cobrança era maior, até de mim mesmo, e não sabia lidar com essa pressão. As lesões também me atrapalharam muito, já sofri cinco cirurgias (três no joelho esquerdo e duas na mão esquerda), a pior delas em 2017. Quero chegar a Tóquio sendo conhecida e respeitada, em condições de conquistar medalha – diz a judoca.
Um fator que também favoreceu sua evolução, na avaliação de Rochele, é o fato de não precisar percorrer longas distâncias para participar das principais competições e fazer intercâmbio com judocas de outras escolas tradicionais do continente:
– Aqui me dei conta de como o Brasil é longe de tudo e de como é difícil e caro para a gente viajar. O meu calendário agora tem 11, 12 competições. Antes, eram só três ou quatro.
Em Lisboa, Rochele divide um apartamento com a carioca Bárbara Timo, amiga de longa data que também naturalizou-se portuguesa. Essa estratégia lusa de "importação", aliás, tem dado frutos. No Mundial deste ano, no Japão, Bárbara conquistou a prata na categoria até 70kg.
O país europeu faturou ainda um ouro com Jorge Fonseca, que nasceu em São Tomé e Príncipe, na África, e mudou-se para Portugal aos 11 anos. Esse desempenho deixou a delegação lusa em terceiro lugar no quadro de medalhas, à frente do Brasil, que teve três bronzes na competição realizada no mesmo ginásio que abrigará as lutas nos Jogos de 2020.
Plenamente adaptada a Portugal, Rochele não pensa em voltar. Nem mesmo quando findar o contrato com o Benfica, em 2024 – ou seja, por mais um ciclo olímpico. Não que tenha esquecido as raízes. Ela inclusive faz parte de um grupo de WhatsApp, "Gaúchos pelo mundo", no qual combina rodas de chimarrão.
Alguns hábitos locais, claro, foram incorporados. Agora, a atleta come mais peixes e não abre mão de saborear os famosos pastéis de Belém – ou de nata, como chamam por lá – quando vai ao bairro de mesmo nome para visitar a Torre de Belém, um dos principais cartões-postais do país.
Para a felicidade ficar completa, só falta a companhia do marido, Felipe Quadros, 33 anos, técnico de judô da Sogipa. A mudança está prevista para depois dos Jogos. Se tudo sair conforme os planos de Rochele, ele vai ser recepcionado com beijos, abraços e uma medalha olímpica.