No recente Mundial de atletismo de Doha, vimos Christian Coleman confirmar o posto de homem mais rápido do planeta com seu primeiro título da competição, vimos Christian Taylor manter seu incrível domínio no salto triplo ao faturar o tetra da prova, vimos Darlan Romani fazer bonito e, mesmo assim, ficar de fora do pódio no arremesso de peso, na disputa de maior nível técnico no Catar.
E vimos despontar uma nova estrela do esporte: Sifan Hassan. A holandesa brilhou no Estádio Khalifa com uma dupla e improvável conquista: o ouro nos 1.500m e nos 10.000m. A inédita façanha da atleta de 26 anos remete a outro fundista que fez história no atletismo: Mo Farah, o britânico que mandou nos 5.000m e nos 10.000m na última década – o agora maratonista de 36 anos foi bicampeão olímpico e tri mundial em ambas as distâncias.
Não por acaso, no meio do atletismo, Sifan já começa a ganhar fama como a "Mo Farah de saia". Traçar paralelos entre atletas de gêneros diferentes geralmente é uma atitude que embute preconceitos, porque quase sempre esse tipo de comparação é balizada pelo desempenho do expoente masculino. Mas, de fato, Mo e Sifan têm mais em comum do que as vitórias em corridas de meio-fundo e fundo nas pistas.
A começar pelas origens. Ainda criança, Mohamed Muktar Jama Farah fugiu da guerra civil na Somália – primeiro para o Djibouti, depois para o Reino Unido, onde aos oito anos foi morar com o pai, um cidadão britânico nascido em Londres. Já Sifan nasceu na Etiópia e, aos 15 anos, foi para a Holanda, onde sua família foi recebida como refugiada. Em 2013, obteve a cidadania holandesa e passou a representar o país em competições internacionais.
Técnico polêmico
Outro ponto que une os dois atletas é Alberto Salazar, o polêmico treinador americano que, em meio ao Mundial de Doha, levou punição de quatro anos de suspensão por incentivo ao doping. Tanto o britânico quanto a holandesa são pupilos do ex-maratonista de 61 anos, responsável por experimentos suspeitos no âmbito do Projeto Oregan, um centro de treinamento de alto nível nos EUA bancado pela Nike.
Após a revelação do escândalo, houve quem lançasse sombras sobre as vitórias de Sifan, mas por enquanto não há indícios de que a holandesa tenha se beneficiado do uso de substâncias proibidas – vale sublinhar que atletas de ponta são submetidos a exames periódicos, e amostras são armazenadas por pelo menos 10 anos para testes futuros, com a perspectiva no avanço das técnicas de controle de dopagem.
Depois da conquista nos 1.500m, no penúltimo dia do Mundial (Sifan já havia vencido os 10.000m, antes do anúncio da punição a Salazar), a atleta afirmou que é inocente e desabafou.
– Foi uma semana difícil para mim – disse ela no dia 5 de outubro. – Estava muito brava. Não conseguia falar com ninguém. Queria mostrar que o trabalho duro pode vencer tudo.
Se as raízes africanas e as medalhas colecionadas sob bandeiras de nações europeias aproximam Mo Farah e Sifan Hassan, a personalidade dos corredores não poderia ser mais diferente. Conversei sobre esse e outros aspectos de ambos os atletas com José Haroldo Loureiro Gomes, o Arataca, técnico da Sogipa e da Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt) que acompanhou in loco o desempenho da holandesa em Doha.
– Mo Farah se diverte correndo. É uma espécie de Ronaldinho do atletismo, está sempre sorrindo. Já Sifan é introvertida, calada – diz o experiente treinador gaúcho, que se declara fã da holandesa nas pistas. – Nunca surgiu uma mulher assim, capaz de dominar dos 1.500m até os 10.000m. No masculino, já teve outros grandes atletas além do Mo Farah, como Said Aouita (marroquino que se destacou nos anos 1980 nos 800m, nos 1.500m e nos 5.000), por exemplo.
Dona do sexto melhor tempo da história nos 1.500 (3min51s95), Sifan ficou a pouco menos de dois segundos de quebrar o recorde da distância, que pertence desde 2015 à etíope Genzebe Dibaba – entre elas figuram quatro ex-meio-fundistas chinesas que se destacaram na década de 1990.
A holandesa é recordista mundial da milha (prova não olímpica de 1,6km) e também tem boas marcas nos 3.000m (outra distância que não consta no programa dos Jogos) e nos 5.000m. O curioso é que ela relutava a competir nos 10.000m, mas foi convertida por Salazar, que passou a orientar os treinamentos da holandesa em 2016.
– Na teoria do Salazar, quem corre bem embaixo (provas mais curtas) corre bem em cima (distâncias mais longas). Funciona, por exemplo, para o especialista dos 400m que tem potencial para correr os 800m. Mo Farah corre bem dos 1.500m até a meia-maratona (21km) – explica Arataca.
Proibida de treinar com o suspenso Salazar, a corredora terá de buscar outro técnico para lapidá-la ainda mais até a Olimpíada de Tóquio. Depois de Sifan deixar o Rio de Janeiro sem medalhas em 2016, os Jogos de 2020 serão a última escala em sua trajetória rumo ao olimpo do atletismo. Um lugar onde Mo Farah já tem cadeira cativa.