— O futebol espanhol será dividido daqui pra frente entre antes e depois de Vinicius Junior.
A frase acima é do ex-volante Marcos Senna, negro e que mora na Espanha há 20 anos. Para ele, o atacante brasileiro está "revolucionando" o debate racial no país.
— Eu não acredito que a Espanha seja um país racista, mas acho que foi muito válido o Vinicius Junior dizer aquilo. Ele está promovendo uma revolução. Depois daquela declaração, nunca houve um debate tão intenso sobre racismo como está acontecendo agora — disse a GZH o paulista de 46 anos, que se naturalizou espanhol em 2006 e conquistou a Eurocopa 2008 pela seleção.
Entre terça (13) e sexta (16), a reportagem de GZH esteve em Madri, Valencia e Barcelona e realizou mais de 15 entrevistas com ativistas, pesquisadores, membros do governo espanhol, dirigentes, atletas e, principalmente, negros que moram na Espanha, com o objetivo de entender as razões dos duros e repetidos atos racistas sofridos por Vinicius Junior em pelo menos 10 partidas do Real Madrid na última temporada. Praticamente todos relatam que os espanhóis não conseguem compreender a dimensão do racismo, pois nunca haviam discutido o tema até então.
— Eles usam no dia a dia muitas expressões racistas. Isso tem no Brasil também, mas a diferença é que aqui na Espanha eles não consideram isso racismo. Até o que aconteceu com o Vinicius Junior eu vi muitas pessoas dizendo que não era racismo, que era coisa do futebol. E não é coisa do futebol, é racismo — conta a costureira baiana Jeanne Bomfim, que vive na Espanha há cinco anos e integra a Associação Cultural Brasileira Maloka, coletivo de defesa da cultura afro-brasileira e de combate ao racismo em Madrid.
Atleta de futsal do El Pozo Murcia, no sudeste do país, o mineiro Léo Santana, 35 anos, também vive há cinco na Espanha e relata que sofre mais racismo no dia a dia do que nos ginásios espanhóis.
— Já escutei a palavras "macaco" contra mim em um ou dois jogos, mas já sofri mais nas ruas, no mercado e no shopping do que no esporte. Sinto que há aqui um racismo enraizado, acham estamos tirando o emprego deles. E eles preferem negar o caráter racista do que aconteceu contra o Vinicius Junior do que se mobilizar para evitar que aconteça novamente — alerta.
Já para o auxiliar-administrativo do consulado brasileiro em Madri, Antônio Santos, 40 anos, a Espanha não é mais racista que o Brasil. Porém, para ele, o problema é a negação dos espanhóis em admitir que existe discriminação racial no país.
— A sociedade espanhola é omissa e acha que não tem racismo, acha que é coisa de uma minoria. Além disso, a maioria dos espanhóis entende que o que aconteceu com o Vinícius Júnior não foi racismo. Acham que, como ele é o melhor jogador do Real Madrid, tem que xingá-lo de alguma coisa para desconcentrá-lo. Para eles, é só mais um xingamento normal de estádio de futebol — relata.
Já escutei a palavras "macaco" contra mim em um ou dois jogos, mas já sofri mais nas ruas, no mercado e no shopping do que no esporte.
LÉO SANTANA
jogador de futsal do El Pozo Murcia
Em Madri, a reportagem de GZH foi à sede do Ministério da Igualdade e conversou com o presidente do Conselho para Eliminação da Discriminação Racial na Espanha (Cedre), Antumi Toasijé, 53 anos. Historiador e militante do movimento negro desde a juventude, o ativista observa que os espanhóis usam subterfúgios para fugir do debate sobre o racismo.
— Sempre houve aqui um negacionismo em relação a este tema. Os espanhóis nunca quiseram debater esse assunto e nem reconhecer sequer que há racismo aqui. Sempre foram usados aqui todos os tipos de desculpas para se evitar falar de racismo. Se fala de xenofobia, de aporofobia (aversão a pobres) e de todo tipo de coisa, mas pouco de racismo.
Já para a jornalista gaúcha Tatiana Mantovani, correspondente do canal TNT em Madrid, e que mora no país há 11 anos, a Espanha, curiosamente, está muito à frente do Brasil no debate sobre os direitos das mulheres e da comunidade LGBT. Porém, o mesmo não ocorre com a questão racial.
— Não dá nem para comparar. Quando a mulher na Espanha diz que ela não quer fazer algo, é não e pronto. O Daniel Alves, por exemplo, está preso porque existe uma lei na Espanha que protege a mulher. Oo combate à homofobia na Espanha também é bem avançado. Há leis garantindo o casamento entre homossexuais. Mas, na questão racial, até o Vinicius Junior ser alvo de insultos racistas, eles não tinham enxergado sequer a necessidade de começar esse debate. E a cobrança veio de fora. Parece que os espanhóis tomaram um "soco na cara" com a repercussão mundial e começaram a se olhar no espelho e a entender que realmente existe a necessidade de discutir o racismo — reflete Mantovani.
A falta de debate sobre os temas raciais tem razões históricas. Para o cientista político, pesquisador, produtor cultural e poeta Yeison Garcia, os negros que não se calam diante do racismo acabam sendo mais vítimas de episódios de discriminação.
— O Vinicius Junior cumpre um papel de negro que os racistas espanhóis não estão acostumados. É uma pessoa que se orgulha de ser negra em um espaço tão importante como o futebol e que, ao invés de baixar a cabeça ou se intimidar com os insultos racistas, o que ele faz é levantar a cabeça e levantar a voz. Acho que essa atitude deixa os racistas com muito mais raiva e os leva a insultá-lo ainda mais — avalia o colombiano de 31 anos, mora há 22 anos na Espajua e milita na Associação Espaço e Consciência Afro, em Madrid.
Segundo Yeison Garcia, o conceito de racismo que o mundo conhece hoje surgiu no Império Espanhol, no século XVI.
— A Espanha desempenha um papel muito importante na construção do racismo moderno. Foi na Espanha onde ocorreu o debate entre Bartolomé de las Casas e Ginés de Sepúlveda, que discutiam se os povos originários poderiam ser considerados humanos ou não, pois se fossem considerados humanos, a dominação das Américas não seria legítima. Foi esse debate que constituiu a ideia de raça que construiu o racismo moderno. E esse debate foi aqui na Espanha. A construção do arcabouço ideológico que justificou a escravização dos negros africanos também foi feita principalmente na Espanha. E isso é uma coisa que não se discute aqui de jeito nenhum. Portanto, ao não se discutir isso, significa que a Espanha não se propõe a estabelecer um marco político e jurídico para enfrentar de verdade as consequências do racismo — crítica.
Garcia se refere ao episódio conhecido como Controvérsia de Valladolid, um debate moral e teológico promovido pelo Império Espanhol em 1550, quando a nação ibérica, poucos anos após iniciar a colonização da América, discutia se era moralmente justificável dominar os povos indígenas e convertê-los à força ao catolicismo. Neste debate, o jurista e político Bartolomeu de las Casas ficou conhecido como defensor dos povos nativos, enquanto o teólogo Juan Ginés de Sepúlveda argumentava que os índios seriam "seres inferiores", o que justificaria a sua dominação por parte dos europeus. Essa visão de que o racismo espanhol tem origens históricas é reforçada por Antumi Toasijé:
— Eu digo que a Espanha é provavelmente a nação que inventou o racismo como o conhecemos. O racismo estruturado em um sistema de castas, onde haveria seres superiores, os brancos, e os inferiores, os de pele mais escura. é claramente uma invenção que ocorreu particularmente, na Espanha. Quando os espanhóis derrotaram os povos muçulmanos que dominavam a península ibérica até o século XV, criou-se um discurso triunfalista, de superioridade. Então, os espanhóis levaram essa ideia de superioridade para o continente americano e criaram hierarquias raciais.
Um dos sintomas da falta de debate sobre o racismo no entre os espanhóis é a falta de dados sobre a quantidade de negros que vivem no país e, especialmente, sobre a quantidade de casos de racismo.
— Há poucos estudos aqui sobre racismo e poucos dados disponíveis sobre a diversidade racial. A Espanha não classifica, como outros países, a população por raça ou origem. No último ano, houve oficialmente apenas pouco mais de 600 relatos de casos de racismo, um número irrelevante para uma população de 47 milhões. Mas isso é irreal. A maioria das vítimas não denuncia porque acredita que não vai adiantar nada — alerta o professor de sociologia da Universidade de Córdoba, no sul do país, David Moscozo.
A sociedade espanhola é omissa e acha que não tem racismo, acha que é coisa de uma minoria.
ANTÔNIO SANTOS
Auxiliar-administrativo do consulado brasileiro em Madri
Segundo os pesquisadores, o racismo especificamente no futebol virou um problema mais grave a partir dos anos 1990, quando a Uefa permitiu que jogadores da comunidade europeia pudessem atuar livremente em qualquer clube do continente sem ocuparem as vagas limitadas de estrangeiros nas equipes.
— Já existem precedentes de casos de racismo no futebol nos anos 1970, mas o ponto de virada foi a lei Bosman, em 1995, que aumentou a quantidade de jogadores estrangeiros no país. E isso coincide com a ascensão do movimento ultra (como são conhecidas as torcidas organizadas em alguns países europeus) na Espanha e a ascensão do radicalismo de extrema direita. E o futebol é sempre uma metáfora social. O que acontece nos estádios é um reflexo da sociedade. Quando a extrema direita e os partidos populistas de direita que adotam discurso de ódio crescem, isso acaba se refletindo nos estádios — opina Carles Viñas, professor de História Contemporânea da Universidade de Barcelona.
Há, porém, quem entenda que o combate ao racismo já vem evoluindo desde antes das denúncias de Vinicius Junior. O jornalista e escritor Salva Moya, 53 anos, escreveu dois livros e uma tese de doutorado sobre o racismo no futebol espanhol e diz que, apesar da repercussão do caso envolvendo o atacante do Real Madrid, os casos de injúria racial nos estádios estão diminuindo.
— Ocorreram, por exemplo, outros casos recentes de insultos raciais contra o Iñaki Williams, do Athletic Bilbao, e com o Diakhaby, do Valencia. Mas, ainda assim, acredito que, no geral, há menos racismo nos estádios de futebol da Espanha do que havia há 15 ou 20 anos. Penso que nós já demos passos importantes neste combate. A Espanha não é um país racista. Nem o Brasil é, nenhum país é. Mas sim, existe racismo no nosso país e no nosso futebol e, para combater isso, temos que aplicar a lei com rigor e fazer campanhas de prevenção, sensibilização e conscientização — opina.
Um outro problema da Espanha é a falta de uma legislação clara sobre o racismo, o que acaba favorecendo a impunidade.
— O racismo no código penal espanhol está vinculado a uma lei muito abrangente, que fala em "crimes de ódio". Nós defendemos que se crie uma lei específica contra o racismo. Porém, isso não quer dizer que hoje não haja leis na Espanha para punir os crimes de discriminação racial. O problema é que na prática a gente não vê a aplicação da lei. E isso é um problema especialmente no esporte. O futebol, para mim, é uma área em que essa situação saiu completamente do controle — opina Antumi Toasijé.
A ineficiência das autoridades em punir o racismo na Espanha não é exclusividade do poder judiciário. No âmbito do futebol, as disputas políticas entre as entidades esportivas e os órgãos da Justiça dificultam a aplicação de punições tanto na esfera esportiva quanto no âmbito criminal.
— No passado, quando tentamos punir os clubes com interdição de estádio, perda de mando de campo ou determinar jogos com portões fechados, os clubes sempre recorreram à Justiça. E aí os órgãos do Estado tiram as nossas competências para punir os clubes. Nós queremos punir, mas aí ficamos sem ter poder para isso — protesta o presidente da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF), Luis Rubialess, em entrevista exclusiva concedida a GZH em Madrid.
Em dezembro do ano passado, contudo, foi aprovada no congresso espanhol a nova Lei Geral do Esporte, que dará mais poder às federações esportivas para punir casos de discriminação. Contudo, ainda faltam trâmites burocráticos para essa legislação entrar em vigor.
Enquanto acompanha o início de um debate sobre a questão racial, a comunidade negra que vive na Espanha espera que a repercussão dos atos ocorridos contra Vinicius Junior aumente de forma efetiva o combate à discriminação.
— Eu espero que o que aconteceu com o Vinicius Junior seja um divisor de águas. Não vai acabar com o racismo, mas pelo menos eu acho que a sociedade espanhola vai parar para refletir e, ao menos, reconhecer que existe racismo no país. O primeiro passo para se resolver um problema é você admitir que ele existe — acredita a ativista negra brasileira Jeanne Bonfim.
E, como disse o ex-volante Marcos Senna, que Vinícius Júnior tenha dado início a uma revolução.