O coronavírus impactou - e ainda impacta - o mundo do esporte. Prova disso foi o adiamento dos Jogos de Tóquio por um ano, para julho de 2021. Há mais de cem dias afastados das competições e com restrições de treinamentos, atletas de clubes gaúchos descrevem a rotina e o início de um novo ciclo rumo à Olimpíada. Em reportagem produzida pela RBS TV, a judoca Mayra Aguiar, 28 anos, a nadadora Viviane Jungblut, 23, o ginasta Luís Porto, 23, e o triplista Almir Júnior, 26, falam dos desafios de treinar durante a pandemia, as mudanças na preparação para 2021 e relataram a frustração de ver o sonho olímpico ser adiado.
Bicampeã mundial e dona de duas medalhas de bronze nos Jogos (Londres 2012 e Rio 2016), Mayra conta que teve de lidar com duas dificuldades nesse período: a afastamento dos tatames - ela começou a praticar judô aos seis anos, e da mãe, Leila, que foi para o Litoral durante a pandemia. Mas encontrou na irmã Helen, também judoca, e nos treinos online uma forma de compensar as limitações.
— O começo foi bem ruim porque a rotina muda inteira. O corpo gritando pra fazer alguma coisa pra gastar energia. Melhorou muito quando a gente começou com os treinos online. O grupo inteiro se via e estava aquela saudade do pessoal A minha irmã está em casa comigo e também é judoca. Ela colocava o quimono. Mas eu me empolgo muito em cima dela, coitada, mas ela me ajuda muito — relata a meio-pesado da Sogipa, uma das esperanças de medalha do Brasil na Olimpíada.
A dificuldade de manter o alto nível dos treinos foi um dos principais obstáculos aos atletas. Com a flexibilização prevista no decreto da prefeitura, Viviane conseguiu retomar em parte as atividades na segunda semana de maio.
— Meu preparador físico mandava planilhas de treino para fazer em casa, para manter a forma e o retorno não ser tão difícil. Nosso esporte depende muito da piscina. Alguns dias longe, é impressionante como muda a nossa sensibilidade. Nunca tinha ficado tanto tempo sem nadar. Por isso foi realmente um período bastante delicado — afirma a especialista em provas de longa distância da natação.
Há mais de três meses em casa, Porto treinou por videochamada com a seleção brasileira, aliando exercícios preventivos, de mobilidade e flexibilidade. Ele até tentou levar um "cavalo" — um dos seis aparelhos da ginástica artística masculina — para dentro de casa, mas a falta de espaço atrapalhou em parte os planos do atleta.
— Não tinha espaço para andar, mas tinha para ficar girando no cavalo. Treinamos online com a seleção, mas não é a mesma coisa. Você sente falta do ginásio, da competição. Não tinha muito o que inventar, até para não quebrar a casa — brinca.
Ainda em março, quando o avanço dos casos da covid-19 forçou Estados e municípios a decretar medidas de distanciamento social, Almir foi para a fazenda da família, em Mato Grosso. Fez treinos leves de reforço muscular e, quando algumas academias puderam ser reabertas, focou em trabalhos de força. Mas os treinamentos só serão intensificados em agosto, quando já deverá estar em Portugal, integrando uma missão organizada pelo Comitê Olímpico do Brasil (COB) que levará mais de 200 atletas para treinar com mais segurança na Europa. A ideia é chegar em plena forma ao Mundial indoor, que será disputado em março de 2021 em Nanjing, na China.
— Vou começar a treinar forte de verdade em início de agosto. Só que, ao mesmo tempo, não posso ficar todo esse tempo parado.. Então a gente vai se recondicionando, vai voltando — conta o atleta.
Veja os principais trechos das entrevistas dos quatro atletas, que aguardam ansiosamente pela retomada da corrida olímpica.
Almir Júnior (atletismo)
Expectativa na virada do ano
Estava em casa, com mais dois amigos. Virou o ano e eu pensei: "Chegou meu ano. O ano que eu sonhei, o ano que eu me dediquei, que eu esperava chegar bem. Começou, começou Tóquio". Tanto que não fui para lugar nenhum, porque no dia seguinte tinha treino. Até foi um brinde de Tóquio 2020. Chegou, só que não (risos)…
Significado do ciclo olímpico
O ciclo olímpico não começou quando virou o ano, em 2020. Ele começa quando termina uma Olímpiada. São quatro anos. Quatro anos de trabalho, para que o atleta chegue o melhor preparado possível para a Olimpíada. No último ano é para lapidar tudo o que tu trabalhou. Você procura corrigir todos os erros e trabalhar o máximo possível para aquele momento. Porque a Olimpíada acontece de quatro em quatro anos. Se você errar naquele dia, naquele segundo, naquele salto, naquele momento, naquela corrida, naquele jogo, vai ter de esperar mais quatro anos para conseguir fazer de novo. Por isso que é tão importante. Por isso que a Olimpíada tem essa mágica. Você não trabalha para a Olimpíada de um dia para o outro, de um ano para o outro. São quatro anos e o último é o mais importante de todos.
Preparação até a pandemia
No início de novembro, comecei a trabalhar para Tóquio. A minha temporada de um ano. Nunca me preparei tão bem. Nunca me senti tão bem preparado, tão bem treinado, a minha equipe tão bem ajustada para que atingíssemos o nosso pico em Tóquio. Isso me deixava muito confiante. Essa temporada, tudo que eu fiz, o quão bem eu me preparei, eu joguei fora, acabou. Porque a gente está em isolamento. Agora eu estou voltando do zero.
Novo ciclo de treinamentos
Em uma semana sem treino, você já perde muito. A gente chega a treinar quatro, seis horas por dia, aí treinar em casa… não tem como. Então tem que fazer uma preparação para que perca o menos possível. Mas a partir do primeiro mês, do segundo... é impossível. Ainda mais para a minha prova, que e de impacto. Eu preciso estar muito bem reforçado muscularmente para que eu consiga executar ela sem me lesionar, o que é a grande preocupação. Fiz uma pausa para que eu pudesse "destreinar", para que eu começasse de novo, porque tu não consegue juntar uma temporada na outra. Aí tu corre o risco de machucar e colocar a próxima temporada em risco e nós não queremos isso.
Preocupação com a cabeça
Foi difícil, não vou mentir. Para mim, o sucesso, as minhas conquistas vêm a partir do meu trabalho. Não tive Natal, não tive Ano-Novo. Dia 24 e 25 (de dezembro) eu passei treinado, dia 31 (de dezembro), dia 1º (de janeiro). Eu não fui pra casa, não fui ver meus pais, meus irmãos. Abri mão de muita coisa para isso, para essa temporada. Vida de atleta é isso. É complicado, é frustrante. Mas ao mesmo tempo tento pegar aquele gancho de que agora virou pessoal. Se eu me preparei tão bem para esse ano, para o ano que vem tenho que me preparar melhor ainda, Não sei como eu vou fazer isso, mas vou fazer. Tenho atendimento psicológico no meu clube. Eu tenho um psiquiatra que me acompanha diariamente. Conversamos sobre isso muito. Tem o coach do COB também, que me mandou mensagem e se colocou à disposição. E o meu treinador também, o Arataca
Retomada dos treinamentos
Esse período vai ser de treinos muitos fortes. Mas ao mesmo tempo isso começa gradativo, precisa ir recomeçando. Então como não temos pressa, as competições são muito para a frente. Vamos recomeçar bem tranquilo. Exatamente para isso, para que eu possa me preparar bem, para que eu possa ir me recondicionando, me preparando para o treino que é de muito impacto, muito desgastante e você precisa estar muito bem preparado pra isso. Vou começar a treinar forte, de verdade, em início de agosto. Só que ao mesmo tempo não posso ficar todo esse tempo parado, né? Ficar lá em casa curtindo, jogando um play, jogando um Fifa e esperando chegar julho, agosto para começar a treinar. Então a gente vai se recondicionando, vai voltando.
Treino na fazenda da família
Eu corri bastante, que na fazenda lá (em Mato Grosso) o que mais tem é espaço. Então eu corri bastante. Levei meu pai para dar umas caminhadas também, uma parte mais aeróbica. Eu fazia muito reforço muscular, com o próprio peso do corpo. Então foi mais treino de reforço muscular e condicionamento físico, que é o que tu consegue fazer na fazenda, né? Só que também logo depois abriu as academias, então consegui fazer também uns treinos de força, junto com meu primeiro treinador.
Expectativa para Tóquio
Todo dia que eu vinha treinar, pensava: "A olimpíada ta aí". E cada mês que passava: "Caramba, já tá chegando, já tá quase na hora ". A gente tem o relógio ali (na frente da Sogipa) que marca (a contagem regressiva). Aí cada dia que passava eu ficava "caramba cara, já ta chegando, cada dia mais perto". Então eu me imaginava sempre.
Viviane Jungblut (natação e maratona aquática)
Expectativa na virada do ano
Tirei férias em novembro e decidi passar o Réveillon treinando. Quando o relógio bateu meia-noite, um dos desejos foi a Olimpíada, focando a seletiva olímpica, buscando uma vaga em Tóquio 2020, agora 2021.
Significado do ano olímpico
Era o foco total. O ano olímpico não começa no ano dos Jogos, é um ciclo de quatro anos, é um trabalho a longo prazo. Não é só um ano, é toda a preparação que veio até chegar o ano (da Olimpíada).
Preocupação com o coronavírus
A gente via a situação mundial, China, depois Itália. Mas sempre tem a esperança de que, se cuidando, não vai chegar até aqui. E chegando aqui, é a saúde em primeiro lugar. A primeira impressão é um choque, você não sabe o que vai acontecer, mas a decisão é pensando na saúde de todos.
Reação ao adiamento dos Jogos
No primeiro momento, foi uma mistura de ansiedade com a gente ficar chateado. Mas é uma das coisas que a gente não tem controle. Foi uma decisão acertada do Comitê Olímpico Internacional de adiar a Olimpíada. Porque, em nível mundial, os atletas não teriam condições de chegar bem preparados pra Olimpíada. No primeiro momento, sente o choque: "Poxa vida, estamos treinando há três, quatros anos e de um dia para a outro, foi cancelada". Tentei pensar pelo outro lado: "Bom, agora tenho mais um ano para me preparar mais, para focar em alguns detalhes que farão diferença no ano que vem".
Volta às competições
Agora eu sei que não é um momento ideal para voltar a ter competições. Acredito que será quando tivermos um número bem baixo de infectados, a pandemia estiver controlada, ou quando surgir uma vacina ou um remédio que sejam realmente comprovados que ajudam na contenção do vírus.
A preparação durante a pandemia
No primeiro momento, meu preparador físico me mandava planilhas de treino para fazer em casa, para manter a forma e o retorno aos treinos não ser tão difícil. Eu estava treinando em casa e claro que não é fácil. Nosso esporte depende muito da piscina e alguns dias longe é impressionante como muda a nossa sensibilidade. Nunca tinha ficado tanto tempo sem nadar. Por isso foi realmente um período bastante delicado, mas eu procurei trabalhar no que eu tinha deficiências, como a técnica do nado, fazer bastante reforço de ombro, para que eu não sentisse muito.
Mudança nas rotinas de treinos
A gente está voltando aos treinos gradualmente. A primeira semana foi bem leve, segunda aumentando e assim vai até chegar à nossa rotina normal. A gente ainda não voltou à nossa rotina normal, mas estamos conseguindo realizar treinos mais próximos do que eram.
É como se fosse um novo ciclo. Mais curto, mas um novo ciclo. Não dava para começar num gás todo, primeiro porque a gente nem tem um calendário de competições definido. Segundo, porque a gente ficou um bom tempo fora das piscinas e isso pode provocar alguma lesão.
Impacto do vírus na natação
Para a natação, não vai ter muito, porque o tratamento da água com cloro não transmite o coronavírus. O único contato é com outro atleta na borda da piscina, mas em competições é um nadador por raia. Por isso acredito que, para a natação, não haveria mudanças.
Mayra Aguiar (judô)
Expectativa na virada do ano
Eu passei a virada do ano com a minha família na praia. É um ano muito importante para mim, era o ano Olímpico, estava muito confiante, então foi um Réveillon bem gostoso e com os desejos de Ano-Novo, com foco principal no ouro olímpico, em ir bem na Olimpíada, era dar o meu máximo e ser um ano feliz pra todo mundo ali.
Significado do ano olímpico
É um ano muito especial, em que tudo que a gente fez nos últimos quatro anos, tudo que a gente treinou, tudo que a gente abdicou, é ali. No judô, é só um dia, então é naquele único momento que a gente vai ter que dar tudo, a expectativa é muito grande, ansiedade muito grande, mas é muito gostoso. Nas minhas primeiras Olimpíadas (desde 2008), o ano olímpico foi muito ruim para mim, tinha muita ansiedade, era muito difícil de passar o tempo. Fui me acostumando, ficando mais madura, começou a ser gostoso. Via que eu estava preparada e confiante, então estava curtindo muito esse ano. Fiz duas competições esse ano, medalhei nas duas, fui campeã em uma, então já estava curtindo a minha caminhada.
Mudanças na rotina
A minha maior válvula de escape é o judô. Sempre foi o judô desde os meus seis anos, sempre foi ali que eu descarreguei tudo o que eu sentia. Isso e o colo da minha mãe, que me tranquiliza. E essas duas coisas eu não tenho agora. O judô por causa do coronavírus e a minha mãe, que foi para a praia porque ela é do grupo de risco. No começo, foi bastante difícil, mas depois comecei a me focar em outras coisas, a controlar meus pensamentos para ter uma energia positiva e pensar nas coisas boas. Aí, começou a melhorar.
Treinos durante a pandemia
O começo foi bem ruim, porque a rotina muda inteira, a gente não sabe o que fazer. Vai do banheiro para a sala, da sala para o quarto... e o corpo gritando para fazer alguma coisa para gastar energia. Melhorou muito com os treinos online, então o grupo inteiro se via. Aquela união aquilo nos ajudou muito. A gente ainda está treinando todos os dias online, se vendo tanto treinos físicos, como alguma coisa técnica no chão. A minha irmã está em casa comigo e também é judoca, então, ela colocava o quimono e eu fazia umas simulações com ela. Ela me ajuda muito. Na Sogipa, a gente só está fazendo musculação, tem um rigor bastante grande, é bastante importante isso. São quatro, cinco atletas que treinam por grupo, uma hora cada treino e uma parte bem específica. Claro, com máscara é difícil usar e treinar junto, limpar todos os aparelhos da academia cada vez que usa. Tem protocolo muito rígido, mas conseguir fazer isso já se sente muito melhor. Poder tirar aquela energia toda que a gente fique em casa.
Expectativa para 2021
Gosto de me apegar a coisas mais próximas, ao que eu realmente posso controlar agora. Eu me visualizo na minha melhor forma física, eu me visualizo na melhor forma técnica, treinando, evoluindo, tanto na musculação quanto no judô também, então estou me apegando a isso. Claro que, quando eu acordo, o meu objetivo de vida é esse (Olimpíada), mas eu foco no que posso controlar agora.
Luis Porto (ginástica artística)
Expectativa na virada do ano
Eu estava em Copacabana, passei a virada lá e, no que virou o reloginho, já passei a pensar aqui (Grêmio Náutico União). Virou o ano, já vim para cá, dia 2 (de janeiro) estava em casa, vim para o ginásio voltar a treinar com foco na Olimpíada.
Avanço do coronavírus
Estava no Rio me preparando para a Copa do Mundo na Alemanha. A gente viajaria no domingo e, na quarta-feira, cancelaram a competição. Foi quando o vírus chegou com força na Europa. Estava com mala pronta para a Alemanha, me mandaram para casa, e aí eu pensei: ''E agora? Se começar a aumentar, quais serão as consequências?''. Porque a gente teria uma Olimpíada e o mundo inteiro estaria em Tóquio. A gente começou a pensar que poderia ter uma consequência maior.
Mudança na rotina
No início, achei que não duraria tanto tempo. Pensava que em uma ou duas semanas já voltaria para o ginásio. E aí ficou um mês, dois meses... No treinamento online, a gente passou a ter conversas com psicólogos, nutricionistas... A gente usou a metodologia de estar sempre se ocupando, para não cair na rotina de não fazer nada. Treinava de manhã, fazia alguma coisa à tarde, lavava a louça, cozinhava alguma coisa. A gente se ocupava para não ficar maluco.
Afastamento do esporte
A gente nunca ficou tanto tempo fora do ginásio. É engraçado que no ano retrasado, eu rompi o tendão e fiz cirurgia. Era para ficar seis meses sem treinar. Mas com um mês eu já estava treinando membros superiores. Nem quando fiz cirurgia fiquei tanto tempo longe do ginásio. As nossas férias eram de 15 dias, foram as maiores férias da minha vida. Chegou um momento em que achei que não ia voltar mais. Parecia que a vida tinha parado, a gente estava em completa inércia durante esses 100 dias porque não sabíamos quando ia ter competição, a gente não sabia de nada. Quando eu voltei para o ginásio, eu achei que não conseguiria fazer da mesma forma que eu fazia. Na primeira semana, foi difícil. Voltei mais pesado, sem noção do que eu estava fazendo. Agora já estou normal.
Início de novo ciclo
É o maior ciclo olímpico que a gente já teve. Como os Jogos não foram cancelados, a gente segue se preparando para essa Olimpíada. Porque não podemos pensar em 2024 se a de 2020 não aconteceu. A gente segue focado nela, acontece que ficamos quatro anos focados nessa Olimpíada. Chega 2020 e temos esse estresse mental e físico. Por mais que eu tenha voltado a treinar, não sei quando teremos competições.
Expectativa para Tóquio
Eu estava com foco total lá, eu me imaginava lá, me imaginava competindo, com a minha série certinha. Acabou que foi adiado. Agora me imagino ano que vem em Tóquio. Sigo pensando que estarei melhor de que estava em 2020.