Se o mundo estivesse "normal", esses textos possivelmente teriam uma foto de comemoração de gol (ou de decepção), com torcedores celebrando (ou lamentando) ao fundo, emoldurando relatos sobre a partida, a avaliação dos atletas e a ficha técnica, o "documento" do jogo. Mas nada está como antes, a pandemia afetou fortemente o esporte. E hoje, essa parte de GaúchaZH, sempre carregada de cores e sensações, traz as imagens de Beira-Rio e Arena vazios, escuros, tristes. Como têm sido há mais de 100 dias.
É curioso pensar que a última vez que os estádios estiveram cheios foi para ver uma das partidas mais aguardadas da história, o primeiro Gre-Nal da Libertadores, com mais de 50 mil pessoas na casa tricolor. Pensando hoje, talvez aquela pancadaria entre os atletas nos últimos minutos, até isso dê saudade. Depois do clássico, a Arena recebeu uma partida, Grêmio 3x2 São Luiz, e o Passo D'Areia foi a sede do último jogo na Capital, a vitória do Inter por 4 a 1 sobre o São José. Mas essas duas partidas já foram realizadas para arquibancadas vazias, com um olho no campo e outro no coronavírus, que começava a dar as caras no país.
Para jogadores, comissão técnica e dirigentes, a volta do futebol, mesmo que sem público, amenizará a carência, principalmente a financeira. De certa forma, até para os torcedores ver o time do coração em campo ajudará a diminuir a abstinência do esporte. Mas é certo que não será o mesmo astral.
E para quem vive dessa atmosfera, desse ambiente, vai ser como se pouco ou nada mudasse. São centenas de pessoas que ou dependem ou completam a renda familiar vendendo lanches, bebidas e souvenirs do lado de fora ou de dentro dos estádios.
Só dentro do Beira-Rio, por exemplo, o Inter contrata cerca de 600 pessoas, em um investimento que chega próximo aos R$ 100 mil só para pagar os autônomos. Nesse cálculo não está incluída a mão de obra extra que são de responsabilidade da Brio, empresa que administra parte do estádio. A renda das partidas ajuda o clube a aumentar a arrecadação. Só na última partida, Inter 3x0 Universidad Católica, pela Libertadores, a bilheteria somou R$ 1,416 milhão, sem descontar o valor pago pelos sócios, que é embutido nessa divulgação.
— Claro que isso é importante, mas tem o outro lado também, da falta que faz sem contar o dinheiro. Para quem gosta de esporte, ir para o Beira-Rio só para reuniões, mantendo distância e usando máscara, sem aquela expectativa por um jogo, a operação, a chegada dos jogadores, é muito ruim. Eu, que sou um cara ansioso, não consigo nem organizar minha ansiedade — revela o vice de administração do Inter, Victor Grunberg.
No Grêmio, a organização do estádio em dia de jogo fica a cargo da Arena Porto-Alegrense. Sem partidas, a empresa se viu obrigada a reduzir o quadro de funcionários. Existe a expectativa de retomada quando houver jogos novamente, mas o futuro é igualmente incerto.
O estádio, inaugurado em 2012, alterou radicalmente a rotina tricolor, saindo do central bairro da Azenha para a zona norte da Capital. Apesar da mudança, a "nova" casa tricolor caiu nas graças da torcida, e desde aquele Grêmio 2x1 Hamburgo de quase oito anos atrás, mais de 7 milhões de pessoas passaram pelas catracas. Essas pessoas foram responsáveis por uma troca no dia a dia do bairro Humaitá, criando uma oferta de bares, estacionamentos e pontos de encontro de um local esquecido. Só no último jogo com público, o Gre-Nal da Libertadores, a bilheteria da Arena registrou R$ 3,4 milhões.
— Mais falta do que pensava. Sinto falta das partidas, mas aquilo que envolve o jogo, aqueles momentos que antecedem. Quando tem um jogo legal, a gente acorda diferente. É um divertimento, mas ao mesmo tempo importante, diferente de ir a um parque. Esse sentimento é o que move o futebol — avalia o vice-presidente do Conselho de Administração do Grêmio, Duda Kroeff.
Mudanças na oferta dos bares
No entorno dos estádios, a situação não é diferente. Donos de bares e vendedores ambulantes contam com um ponto favorável na relação com o lado de dentro: podem vender bebidas alcoólicas. A cerveja antes do jogo é sagrada para grande parte dos torcedores que frequentam as canchas.
No Beira-Rio, o Nego Véio é um dos pontos de encontro. O bar tem capacidade para abrigar 90 pessoas sentadas, mas em dia de Inter, o fluxo é muito maior. Claro que cerveja é o item mais procurado.
— Uma vez, vendi todo o meu estoque. Um torcedor me pediu um latão e respondi que tinha acabado. Ele olhou na geladeira e apontou que tinha uma lata. Quando virei, tinha mesmo, mas nem era das marcas que eu trabalhava. Falei isso para ele, e perguntei se queria mesmo assim. "Então tá bom, cinco pila." Vendi uma cerveja que nem era minha — recorda-se Adelar Marques, dono do bar.
Os mais de 100 dias sem futebol obrigaram o comerciante a adotar novas estratégias para sobreviver. A novidade principal foi a tele-entrega. Segundo ele, o delivery de comida tem ajudado a passar pelo momento mais difícil de seu empreendimento (e olha que ele começou a trabalhar em 2017, quando o Inter enfrentava as agruras da Série B, e a revolta da torcida por vezes causava danos em sua loja). Apesar dos problemas, aumentou o número de funcionários, de quatro para seis, para conseguir atender aos pedidos. Mas mesmo o resultado positivo não cobre os problemas.
— Não é só o retorno financeiro, que, claro, me faz falta. Sinto saudade da loucura de um dia de jogo, do movimento desde cedo, das pessoas entrando e saindo, do barulho. De trabalhar até quase a hora do jogo e depois entrar no Beira-Rio. Sim, porque não perco um jogo. O Inter precisa de mim na torcida e eu preciso do Inter no bar — completa.
Do outro lado da cidade, o bairro Humaitá sofre com a falta de jogos do Grêmio. A Arena revitalizou a região, aqueceu a economia de uma comunidade mais afastada da região central de Porto Alegre. E ajudou na renda dos moradores. São muitas casas transformadas em bar ao redor da casa tricolor.
Um deles é o Bar da Cleusa, localizado na frente do portão 6, logo abaixo do viaduto. Cleusa, que dá nome ao local, administra junto às filhas Priscila e Suelen, todas de sobrenome Amaral. Elas moram na parte de cima da casa, e também apelaram para tele-entregas nesse período sem jogos. Incrementaram o cardápio até com fondue para os dias mais frios.
Mas em dias de jogos o cenário é diferente. A começar que, pela posição do bar, elas se tornaram o ponto preferido para providenciar o líquido na solidez de tanto churrasco que os torcedores fazem no canteiro central. Desde o final da manhã até o final da madrugada seguinte, há movimento constante. No Gre-Nal da Libertadores, por exemplo, saíram de suas geladeiras 80 caixas de cerveja litrão para satisfazer os desejos dos torcedores. E para atender a todos, reforçam o time com mais três funcionários.
— Sinto falta disso. Estamos conseguindo nos manter, mas não é a mesma coisa. Quando tinha jogo, vivíamos a expectativa dois, três dias antes. Já montávamos o planejamento. E de tudo, mesmo, o que mais dá saudade é das pessoas. Nosso ambiente é mais familiar e temos clientes que vêm aqui desde a inauguração. Viraram nossos amigos — lamenta Priscila.
Tanto ela quanto Adelar são pessimistas. Mesmo que o futebol retorne, não alimentam esperanças que haja público ainda em 2020. A saudade vai só aumentar.