Laila (nome fictício) foi uma das primeiras mulheres assediadas em um estádio de futebol a denunciarem um caso no Rio Grande do Sul. Ao longo de 2018, só 10 queixas de violência contra mulher chegaram ao Juizado do Torcedor – o órgão criado em 2014 para agilizar a resolução das ocorrências em dia de jogo. Há ofensas, ameaças, assédio, exposição de órgão sexual e registro de fotos de torcedoras sem o consentimento delas.
A maioria dos casos foi solucionada em poucas horas, e os infratores deixaram os estádios já punidos. A intenção do Ministério Público (MP) é terminar com a sensação de impunidade e a ideia de que tudo é permitido durante uma partida.
Um dos casos, no entanto, foi arquivado por falta de manifestação da vítima, o que expressa a necessidade de as mulheres buscarem seus direitos junto à justiça. Mesmo que a presença do público feminino não seja mais novidade nos estádios – e tenha aumentado, ainda há quem ache que arquibancada não é lugar de mulher.
Abuso a caminho do banheiro
Ver o Grêmio jogar é rotina para Laila, 29 anos. De família gremista, ela frequentou o Olímpico desde pequena. E sua rotina continuou na Arena. No dia 1º de maio de 2018, pela terceira rodada da fase de grupos da Libertadores, a torcedora encontrou amigos e familiares na esplanada para o confronto com o Cerro Porteño, do Paraguai.
Antes de ingressar nas cadeiras do anel inferior, ela e uma prima foram em direção aos banheiros. No caminho, acabaram surpreendidas com piadas e cantadas que partiram de três homens.
– Baixei a cabeça e continuei andando, sem dar bola para o que ouvia – relembrou.
O caminho foi interrompido: um homem passou a mão no corpo de Laila. Transtornada, reagiu xingando o agressor. Ao perceber que ele tinha cerca de 1m90cm, veio o medo de ser agredida fisicamente. Embora tenha retrucado, chorou minutos depois. De volta à arquibancada, encontrou uma mobilização para ela denunciar o assédio sofrido.
– Meu primo é advogado, me orientou desde o início. Se não tivesse um incentivo, certamente não teria denunciado – contou.
Em poucos minutos, o agressor havia sido identificado e levado à delegacia na Arena. A presença da delegada Sabrina Dóris Teixeira fez com que Laila se sentisse acolhida para contar o ocorrido. Na audiência, o MP propôs que o torcedor ficasse afastado dos estádios onde o Grêmio jogasse por 12 partidas. A pena foi aceita.
Outro caso que teve desfecho durante uma partida foi o de um torcedor flagrado tirando fotos de mulheres sem que elas percebessem. O celular, que foi apreendido pela polícia, tinha imagens de decotes, de coxas de torcedoras que vestiam saia ou roupas justas. Ele teve de se apresentar a uma delegacia durante os quatro jogos.
No Beira-Rio, a mesma atitude foi flagrada pelas câmeras de segurança. Com agilidade, as filmagens ajudaram na identificação do homem que havia espalhado os registros em grupos de whatsApp. Antes de ser encaminhado para o Juizado, ele chamou a vítima de “cadela” e a ameaçou, conforme consta no boletim da ocorrência: “O acusado disse que era melhor não denunciá-lo se não quisesse ser prejudicada”. O colorado recebeu a mesma punição do gremista.
Responsável pela Promotoria do Torcedor, o promotor de Justiça Márcio Bressani cita uma característica comum aos agressores:
– Muitos estão embriagados, o que parece impulsionar os atos contra as mulheres. Por isso a importância da lei que proíbe a venda de bebidas nos estádios.
Ameaça verbal na fila de trás
O assédio nem sempre vem de forma física, como no caso de Laila. Emily (nome fictício) estava na arquibancada superior do Beira-Rio, no 2 a 1 do Inter sobre o Caxias, em 17 de fevereiro deste ano. Os torcedores ao seu redor e ela estavam de pé. Mas os xingamentos da fileira ao fundo tinham direção única:
– Me senti ameaçada, com medo. A primeira vontade foi nunca mais pisar no estádio - relatou Emily à reportagem minutos depois de ser ofendida.
Segundo ela, ameaças como “vou te penetrar” foram ditas pelos homens que estavam um degrau às suas costas. Na delegacia do Beira-Rio, não se sentiu confortável para reviver as ofensas que acabara de ouvir.
– Ficavam duvidando de mim, perguntando se era “só” isso mesmo – relatou.
Aos prantos, Emily não tinha condições de participar da audiência, que foi remarcada para 10 dias depois. No novo encontro, os torcedores se comprometeram a não repetir as ofensas, e a vítima aceitou as desculpas. Acordo parecido foi realizado em outubro, na Arena, quando uma torcedora acolheu retratação após ser xingada. O infrator se redimiu e disse que manteria uma distância de 50 metros do local do ocorrido, para que a mulher não deixasse de frequentar o setor.
– Por mais que se faça um trabalho forte para pacificar o ambiente, existe ainda um rescaldo de machismo. Para eliminá-lo, é preciso fazer sempre a denúncia – ressalta Bressani.
Como denunciar casos de assédio ou agressão nos estádios
- Ao ser ofendida, procure a Brigada Militar ou orientadores que ficam nas arquibancadas. Eles ajudarão na identificação do infrator e na condução até a delegacia dos estádios.
- Na delegacia, faça um boletim de ocorrência relatando o episódio com o máximos de detalhes. Se possível, esteja acompanhada por uma testemunha ou alguém que faça você se sentir mais segura.
- Depois do registro, o Juizado do Torcedor poderá promover uma audiência preliminar com a vítima e o acusado. Você poderá fazer um acordo, aceitando desculpas, por exemplo.
- Caso não haja reconciliação, o Ministério Público proporá uma pena ao acusado. A punição mais comum é o afastamento do estádio por um determinado número de jogos. Nestes dois casos, a medida é determinada no mesmo dia do fato.
- Há a possibilidade também de abrir um processo penal. A partir daí, o caso tem nova audiência com audição de testemunhas, coleta de provas e, posteriormente, julgamento.
Onde encontrar o Juizado do Torcedor
Beira-Rio: em frente ao Centro de Eventos, entre o Portão 3 e a Rampa 1.
Arena do Grêmio: no estacionamento coberto, em frente ao Portão 2.