Os dribles de Luan, o cabeceio de Dourado, a reação do Inter e a vitória do Grêmio no último clássico Gre-Nal rivalizaram com algo menos nobre. O jogo que definiu Maicon, Kannemann e companhia nas quartas de final do Gauchão ficou marcado pela intolerância. o caso de injúria à repórter da Rádio Gaúcha Renata de Medeiros e os gestos obscenos feitos por colorados em direção a mulheres gremistas colocam luz em situações que viraram corriqueiras em estádios de futebol. Mas que não deveriam ser. E elas não toleram mais.
Apesar de o número de mulheres no estádio ter crescido nas últimas duas décadas – no Beira-Rio, hoje, 23% dos associados são mulheres enquanto na Arena o número fica em 16% –, as ocorrências por injúria, assédio ou difamação são quase nulas. Não por falta de episódios ou da vontade delas.
— Esse caso (do torcedor colorado denunciado por injúria à repórter) é muito emblemático para gente porque o respeito à mulher no estádio foi uma conquista. Vemos situações de brigas de homens com homens e mulheres com mulheres. Nunca de homens com mulheres. Por isso, temos de ter o máximo de atenção para não regredirmos — explica Marco Aurélio Xavier, titular do Juizado do Torcedor.
Mas denunciar quem? O mais difícil, elas contam, não é interromper a partida a que estão assistindo – e que pagaram para isso. Identificar o agressor, seja ele verbal ou físico, é missão para poucas em um ambiente de 40 mil pessoas, como foi o Gre-Nal 413.
— Já aconteceu de eu sair em meio à multidão ao fim da partida. Passaram a mão em mim. E não vi nem da onde veio. Denunciar quem? — questiona a odontologista Natália Rodrigues, 31 anos.
As injúrias e assédios, por mais frequentes que sejam tanto no Beira-Rio quanto na Arena, não se transformam geralmente em denúncia. Com isso, não é possível avançar nem coibir.
— É fundamental denunciar. Garante a efetividade na coleta das provas. Sem isso, não podemos penalizar quem quer que seja. Sempre que o poder público toma conhecimento, tem que dar resposta. E dá — garante Marco Aurélio, para completar sobre a não identificação do sujeito na hora da agressão ou injúria:
— O Beira-Rio e a Arena têm monitoramento. Informando o local em que a mulher estava ou onde aconteceu o fato, temos totais condições de identificar.
Nos registros do Juizado do Torcedor, apenas uma mulher levou adiante o ataque sofrido no estádio nos últimos dois anos. Aconteceu no Beira-Rio, em agosto do ano passado, quando dois homens assediaram uma torcedora. Identificados, ambos cumpriram medida cautelar, em que foram impedidos de comparecer a jogos por 90 dias.
O Ministério Público ofereceu a denúncia, e um deles já responde pelo crime. A descoberta da identidade do torcedor passou pelas 284 câmeras de monitoramento que o Beira-Rio tem. Na Arena, são 240 aparelhos.
Modernidade que não existia na década de 1990, quando Natalia começou a frequentar o estádio. A vida dela no Beira-Rio não foi como a do irmão César, cinco anos mais velho. Na adolescência, ele cresceu vendo os jogos do Inter da arquibancada. Ela, não. O que alguns podem identificar como machismo, Paulo Ricardo Centeno Rodrigues, 59 anos, chama de medo.
— Minha filha era uma menina, e eu tinha receio de dar briga e não conseguir tirá-la dali. Depois, virou uma mulher. Eu vejo o que muitas delas passam. Tinha dias em que deixava de ir para que a Natália não fosse também — admite o veterinário.
O medo, a propósito, é o que acompanha as mulheres no caminho e dentro do estádio. Se você, homem, não sabe, elas já saem de casa pensando em como evitar o seu assédio. A começar pela roupa que vestem. Esconder as curvas do corpo e vestir o que mais discreto tem no guarda-roupas virou parte do ritual dos jogos para Natália.
— Eu sei que temos de vestir o que queremos. Mas eu me sinto vulnerável ali. Não gosto da situação de ser assediada.
Kelly dos Santos Plaz, 38 anos, vai na contramão da adversária. Gremista, faz questão de vestir salto, short, se assim ela quiser no dia, e abusar da maquiagem. Se a Arena é uma extensão da sua casa, como considera, ali ela precisa ser respeitada também.
— Nós somos intimidadas e tachadas de vagabundas e “de maria chuteira”. Mas não deixamos de ir bem vestidas, maquiadas e de salto também. Não somos obrigadas a vir de tênis. Aí nos perguntam: vem de salto por quê? Vão para a boate depois? — conta a radiologista e sócia do Grêmio.
O clima só não fica mais tenso no estádio porque a turma do “deixa disso” já é maioria na Arena, segundo a torcedora. Enquanto um ofende, outros 10 condenam e o tiram dali.
— Mas eu me sinto ofendida. A gente precisa se vestir que nem homem, com camisetão, abrigo e tênis para que eles não notem que eu sou mulher? Isso não vai acontecer — afirma Fátima Marilu dos Santos Machado, 56 anos.
Essas duas torcedoras do Grêmio levantam uma bandeira juntas: levar mais mulheres à Arena. Elas se organizaram para que em abril do ano passado o Grêmio tivesse a primeira torcida organizada feminina. O pedido junto ao Departamento do Torcedor Gremista (DTG) foi feito com todos os pré-requisitos que exigia, até então, o estatuto do torcedor, segundo elas.
— Recebemos o retorno três dias depois de que o estatuto havia mudado. O que já era difícil, virou impossível — explica Kelly, uma das fundadoras do Comando Feminino Gremista.
De acordo com o documento, é preciso ter o cadastro de cem integrantes pertencentes ao quadro social há mais de um ano ininterruptamente e que 40 membros da torcida compareçam a todos os jogos no ano, até o próximo recadastramento anual.
— Isso é só porque somos mulheres. Nenhuma outra torcida precisou ter esses pré-requisitos. Por quê? — questiona.
O DTG afirma que não existe dificuldade para o núcleo feminino. Existem, segundo o responsável Thiago Floriano, uma "série de parâmetros que precisam ser atendidos seguindo as regras do clube, como tempo de associação e assiduidade nos jogos". O departamento garante estar sempre aberto para receber as propostas e analisar de acordo com o cumprimento das regras que são estipuladas pela instituição.
A ideia de Kelly era fazer justamente o que ocorre no Beira-Rio há quase uma década, quando foi fundada a Força Feminina Colorada. A única torcida de mulheres no clube é usada como modelo para as gremistas. As adversárias, aliás, viram aliadas quando o assunto é representatividade feminina. Ainda que não se conheçam pessoalmente, é no caminho adotado pela presidente da organizada de mulheres coloradas, a professora Malu Barbará, 56 anos, que elas moldam os próximos passos do núcleo gremista.
— Ligamos para saber se elas iriam ao Beira-Rio no Gre-Nal, queremos nos conhecer. A gente sabe como é difícil esse começo. Que ainda existe quem ache que não temos direito a espaço no estádio. Já ouvimos, por exemplo, que nós, mulheres, começamos a "torcer ontem" e por isso não temos lugar. Há desrespeito, xingamentos impublicáveis. Para ter uma ideia, já ouvimos de jornalistas que vamos ao estádio para olhar os jogadores — lamenta Malu.
Para combater machismo deste nível, a FFC lançou a #torcequenemmulher no último Gre-Nal, três dias depois do Dia da Mulher. Enquanto o clube distribuía braçadeiras com os dizeres de "lugar de mulher é onde ela quiser", as gurias da torcida caminhavam no gramado com uma faixa da organizada.
— Ouvimos assovios, pediram o nosso contato, todo aquele desrespeito. Estávamos representando alguma coisa, e ainda nos veem com outros olhos. Isso três dias depois do Dia da Mulher. Machuca — lamenta a diretora do FFC Francine Malessa, 27 anos.
Neste domingo, no Gre-Nal 414, a cena se repetirá. Desta vez, com jogadores de Grêmio e Inter lado a lado, na Arena, levantando a bandeira de que "lugar de mulher é no campo, na arquibancada e onde mais ela quiser estar".
Se dependesse dos presidentes de Grêmio e Inter, certamente Arena e Beira-Rio já seriam ambientes bem mais afeitos às mulheres. Amigos e colegas de faculdade, Romildo Bolzan e Marcelo Medeiros sempre deram exemplo de civilidade, apesar de presidirem clubes adversários. Após os acontecimentos de domingo passado, os dois estarão juntos no gramado da Arena, assim como os jogadores, em busca do aumento da representatividade feminina em seus estádios.
— Nós dois convivemos de forma harmoniosa, é o primeiro passo. Mas não existe uma sociedade assim sem respeito e sem tolerância. Precisamos ter respeito de quem pensa diferente e torce diferentemente da gente. A presença da mulher humaniza e pacifica o ambiente — entende Medeiros.
Bolzan fala do ambiente que abrace não só as mulheres como crianças e idosos.
— Um ambiente pacífico, respeito e convivência saudável fazem parte de uma garantia de bom ambiente. É muito triste quando termina como vimos semana passada.
Onde denunciar?
É preciso procurar um policial militar. Se não encontrar, dirigir-se ao Juizado do Torcedor.
Na Arena: ao lado do Portão 2, no subsolo.
No Beira-Rio: em frente o Centro de Eventos, ao lado do Portão 3.
Cenário nacional
Dois dias após o Gre-Nal no Beira-Rio, o tema voltou a ser pauta no Brasil. A repórter Bruna Dealtry, do canal Esporte Interativo, foi assediada por um torcedor do Vasco enquanto fazia a cobertura do jogo contra o Universidad de Chile, pela Libertadores. Ela relatava o ambiente quando foi beijada por um homem.
– Sempre fui uma repórter que adora uma festa de torcida. Não me importo com banho de cerveja, torcedor pulando, pisando no meu pé… Mas hoje, senti na pele a sensação de impotência que muitas mulheres sentem em estádios, metrôs, ou até mesmo andando pelas ruas – escreveu Bruna em sua rede social.
Os números
Inter
105.983 sócios (24.213 são mulheres e representam 22,8%)
Grêmio
90 mil sócios (14.400 são mulheres e presentam 16%)
A percentagem das mulheres sócias nos grandes clubes:
Atlético-MG: 9%
Botafogo: 10%
Corinthians: 20%
Cruzeiro: 10%
Flamengo: 8%
Fluminense 15%
Palmeiras: 12%
Santos: 17,5%
São Paulo: 10%
Vasco: 7%