Elas quebraram barreiras. Foi assim nos gramados, enfrentando xingamentos de torcedores na grade enquanto jogavam, nos vestiários de clubes de futebol em que ouviam que eram apenas "fazedora de cardápios" e até mesmo nas pistas de corrida, vendo companheiros se negarem a subir no mesmo pódio.
Katiuce Borges, Eduarda Luizelli e Cristina Rosita têm profissões diferentes, mas todas ajudaram a abrir espaço para outras mulheres.
Mas os números ainda mostram que o caminho que elas trilham costumam ter mais dificuldades do que os homens. As mulheres, por exemplo, continuam com escolaridade maior do que eles, só que ganhando 23,5% menos. É o que mostra a pesquisa Estatísticas de gênero – Indicadores sociais das mulheres no Brasil, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
No dia internacional dedicadas a elas, GaúchaZH conversou com a nutricionista do Grêmio, com a gerente do futebol feminino do Inter e com a piloto para dar luz ao início recheado de preconceito das três por estarem um ambiente masculino.
A "fazedora de cardápio"
Katiuce Borges era mestre em nutrição quando foi convidada a participar de uma seleção no Juventude em 2007. Venceu as outras concorrentes pelo conhecimento. Recebeu o rótulo de "fazedora de cardápio" e era fora de cogitação viajar com o time. O motivo?
– Diziam que eu não podia ir no mesmo ônibus do que os jogadores. Existia uma barreira bem clara – lembra a nutricionista de 35 anos.
Adquirir a confiança e respeito da comissão técnica foi o primeiro passo para o trabalho de Katiuce ser respeitado entre os jogadores e comissões técnicas. Foi assim, aliás, que recebeu a oportunidade de participar de uma seleção para a base do Grêmio, há sete anos. Esta, a regra número 1 para o uma mulher transitar em um ambiente totalmente masculino:
– Chegar por currículo. Eu entrei no Juventude assim. E quando cheguei ao Grêmio foi assim também, por uma seleção. Vai da postura de cada uma, de como a gente consegue sair de situações embaraçosas. Se tu dá uma resposta à altura, os outros já sabem que não podem fazer. Mas nunca tive problemas no Grêmio – garante.
Apesar do passado preconceituoso, o futuro tende a ser otimista. Se no início da carreira de Katiuce as nutricionistas eram raras em clubes de futebol, hoje virou peça fundamental para compor a comissão técnica. Todos os times da Série A contam com um profissional especializado para a alimentação dos atletas. Metade da Série B também.
– Existe, sim, uma evolução. Nesses 11 anos, senti. Mas tudo vai da comissão técnica, como ela vê a nutricionista. Quando eu cheguei no Grêmio, a nutricionista não fazia todas as viagens. Hoje, eu participo de todas. E a tendência é ter mais de uma, é um mercado que ainda vai crescer – projeta.
Ainda que Katiuce não tenha acesso total ao vestiário, o trabalho não tem prejuízos.
– Às vezes mando o suplemento pelo massagista ou os jogadores vêm na minha sala. A gente conseguiu ajustar para que o trabalho não fique prejudicado.
Uma intrusa no campo
Quando Eduarda Marranghello Luizelli começou a jogar futebol, na década de 1990, nem o mais básico dos equipamentos de jogo era pensado para elas:
- Usávamos uniforme dos homens. Hoje, já tem com modelagem feminina. Foi um momento de quebra de barreiras, de preconceito e paradigmas.
Duda é um dos grandes nomes do esporte no Brasil: atuou pelo Inter, Milan, Verona e seleção brasileira. Hoje, ela é gerente do futebol feminino do Inter e está à frente da retomada do modalidade no clube. Por isso, tem autoridade para falar sobre o espaço das mulheres no futebol. Ela reconhece que houve avanços, mas ainda há muito a se fazer:
– A representatividade é menor do que o masculino. Acho que nos próximos 10 anos vai crescer. A Marta não vai ganhar igual ao Messi ou Neymar. Mas começando a ter exigência do TMS (registro de transferência internacional de jogadores), o passe, todo mundo vai ganhar com isso, jogadoras e clubes. A valorização da mulher vai ser muito grande. O futebol feminino é muito novo, tem apenas 30 anos. A primeira olimpíada foi em 1996. A gente está no caminho certo.
Desde criança apaixonada pelo esporte, Duda se diverte ao lembrar que, antes de se profissionalizar, mesmo jogando entre os guris, era a mais solicitada para escolher o time no futebol da rua, privilégio aos melhores da equipe. Já naquela época, ela aprendeu que a melhor forma de conquistar respeito em um ambiente totalmente masculino era mostrando sua qualidade como jogadora.
Apesar de todo o sucesso que obteve ao longo de sua trajetória, ela não escapou de passar por situações complicadas por ser uma mulher jogando futebol. Ouviu bastante xingamentos enquanto disputava jogos, "mas nada que pudesse alterar o emocional", garante.
Ainda hoje, a presença de mulheres no mundo do futebol gera casos como repórteres sendo xingadas pela torcida, musas dos clubes sendo constrangidas em entrevistas e árbitras assistentes sendo objetificadas após cometerem erros. Mas, ao relembrar como era esse ambiente quando começou a atuar como jogador, Duda é otimista sobre o futuro:
– Na época, não existia nem repórter mulher. Se existia, era uma ou duas. Eu acho que era tipo "o que essas intrusas estão fazendo aqui". Até pelo reconhecimento no nosso trabalho, fomos buscando espaços. E estamos aí, agora é uma exigência da Fifa.
A "piloto de fogão"
Numa das poucas categorias esportivas em que homens e mulheres podem competir juntos, por muito tempo ela foi a única entre eles no Brasil. Cristina Rosito já pilotou praticamente todos os tipos de modalidades: kart, moto, carro de turismo, caminhão. Filha de Raffaele Rosito, primeiro gaúcho a correr no Exterior, ela também foi pioneira no automobilismo, ao ser a única até então a conseguir carteira para conduzir carros de corrida aos 16 anos.
E não foi difícil para Cristina seguir os passos do pai: em suas lembranças de infância, estão os dias em que ia para Tarumã pular corda. Aos 11 anos, começou a correr de moto. Dos 14 aos 16, acelerava nas pistas de kart. Nesse período, foi campeã e vice-campeã brasileira, tri campeã gaúcha e participou de mundial na categoria.
- Eu sempre era a única mulher. Eu, com 16 anos, pilotava carros de turismo. Corria contra o Emerson Fittipaldi, nomes consagrados do automobilismo. Depois comecei a correr de carro em várias modalidades. Corri também de caminhão. E em todas fui campeã - garante.
Mas uma carreira vitoriosa não poupou a gaúcha de passar por situações machistas. Já teve de ouvir pérolas como "mulher é pra pilotar fogão" e viu muita cara feia quando ela "baixou a viseira" e um competidor percebeu que foi vencido por uma mulher. Apesar dos 40 anos de pilotagem, continua sendo difícil ter que lidar com o preconceito.
- Meu pai sempre me falou que, para ter o meu espaço, era necessário conquistar duas vezes, para provar que eu tinha condições. Imagina eu com 14 anos, ganhando dos moleques. Teve gente que se negou a subir no pódio. Preconceito eu sofro até hoje.
Aos 51 anos, Cristina tenta mudar o que não teve: com cursos, incentiva outras mulheres a seguirem o seu caminho. E comemora quando vê meninas, ainda que em minoria, se aventurando nas pistas afora.