The Last Dance foi como o técnico Phil Jackson batizou o plano da temporada 1997/98 do Chicago Bulls, que marcou a despedida do supertime de basquete no qual Michael Jordan era o astro-rei e em torno dele orbitavam estrelas como Scottie Pippen, Dennis Rodman, Tony Kukoc e Steve Kerr. Foi também o nome que a ESPN e a Netflix deram à série aclamada que recuperou, em 2020, essa história. A Última Dança, título que começa GZH escolheu para esse texto, é a melhor maneira para se referir à despedida de D'Alessandro do Inter, marcada para as 21h deste sábado, no Beira-Rio. O jogo contra o Palmeiras, pela 26ª rodada do Brasileirão, será o adeus do número 10 com a camisa colorada.
Optamos por esse título não para comparar D'Alessandro a Jordan, Pippen, Rodman, nem o Inter aos Bulls, é claro. Mas é que o contexto combina. Porque o pandêmico 2020 teve na série de streaming um de seus momentos mais marcantes, sendo o assunto esportivo mais comentado em um momento que praticamente todas as competições estavam suspensas. E D'Alessandro foi também o assunto mais comentado. Desde sua chegada, no segundo semestre de 2008, foi o ponto onde miravam os holofotes.
Em quase 12 anos, o meia virou referência em todos os momentos. Nas alegrias, era ele quem estava dando volta olímpica batendo tambor de torcida organizada. Nas tristezas, era dele a imagem com a cabeça baixa, sentindo a derrota nas páginas dos jornais. Nas confusões, era para ele que os colorados olhavam e sabiam onde estava o norte, enquanto a política deteriorava os bastidores, os técnicos trocavam e as vitórias diminuíam.
Coincidência ou não, na única temporada em que saiu, desgostoso justamente por esses embates internos, o Inter viveu o momento mais desgraçado de sua história. E foi D'Alessandro o capitão da campanha que o trouxe de volta à Série A. Da Allianz Arena, em Munique, ao Passo das Emas, em Lucas do Rio Verde, sabia-se que o 10 do time era o meia franzino, gritão, habilidoso, debochado, dedicado. Colorado.
— Eu sou mais colorado do que muita gente que diz ser por aí — disse em sua última entrevista coletiva, a que anunciou a não renovação de seu contrato para depois de 31 de dezembro.
Era um recado e provavelmente os endereçados tenham recebido. Mas como não existe um coloradômetro, fixe-se no que é, de fato, verdade: D'Alessandro é colorado.
Não desde 1981, até porque seria difícil que o filho de um taxista e de uma dona de casa de Buenos Aires nascesse pensando em um time de Porto Alegre. Dizem que Andrés Nicolás torcia pelo Racing na infância, por influência de seu pai. Mas para fins históricos, considera-se que seu coração bate pelo River Plate. Criado na base dos Millonarios, foi no Monumental de Nuñez que começou a jogar futebol e sustentar sua família. Ficou lá dos nove aos 22 anos, foi para lá que voltou em 2016, quando pediu um tempo ao Inter.
Racing, River e Inter. A torcida pelo time gaúcho começou dias antes de chegar a Porto Alegre. Fernando Carvalho, presidente campeão do mundo de 2006, recém chegado ao cargo de vice de futebol, sabia que Fernandão deixaria o clube para jogar no Catar. Viu D'Ale pelo San Lorenzo e foi a Buenos Aires para conversar com o meia. O negócio era complexo, 50% do passe era vinculado ao Zaragoza-ESP, onde havia atuado anteriormente e os outros 50% pertenciam ao empresário Marcelo Tinelli, um apresentador de TV fanático pelo San Lorenzo (e que se tornaria presidente do clube no futuro). No total, a compra custaria US$ 5 milhões. A engenharia financeira teve metade do valor paga pelo empresário Delcir Sonda e a outra metade parcelada em cinco anos pelo Inter. Antes de assinar o contrato, Carvalho e D'Alessandro conversaram a sós.
— Ele tinha fama de ser um jogador de difícil relacionamento, que não gostava de brasileiros. Disse que não, que tinha passado "vacaciones" na Bahia e que era profissional, que cumpriria o que fosse acordado. Apertamos as mãos e eu expliquei para ele o que era o Gre-Nal, que era um campeonato à parte, que mobilizava a cidade mais do que River e Boca, que tinha de ter o Grêmio como principal foco dele. Acho que compreendeu isso — recordou o ex-presidente.
Nessa conversa, D'Alessandro virou colorado. Mas não para suprir Fernandão. O capitão do Mundial era um lorde sentado na cadeira numerada. D'Alessandro era o povo de pé na coreia (que ele nem conheceu).
Fernandão veio para mudar o Inter de patamar. D'Alessandro, antes de qualquer coisa, sabia que o que importava mesmo era ganhar do Grêmio.
Em seu primeiro dia em Porto Alegre, viveu o coloradismo na essência. No desembarque, festa de cerca de 400 torcedores, que o aguardavam no Aeroporto Salgado Filho. Horas mais tarde, dos camarotes do Beira-Rio, viu o time perder por 1 a 0 para o Santos, pelo Brasileirão.
Seu primeiro jogo pelo Inter foi um Gre-Nal, empate pela Sul-Americana. Seu quinto jogo foi um Gre-Nal, a volta (com classificação) da Sul-Americana. Seu nono jogo foi um Gre-Nal, pelo Brasileirão, goleada por 4 a 1 e primeiro gol no clássico. Foram nove em cima do Grêmio desde aquele 28 de setembro de 2008, o maior goleador do século do maior jogo do Estado.
Essa mesma Sul-Americana foi seu primeiro título, em dezembro. Depois vieram mais 12 conquistas, entre elas a Suruga, que ele mal fez parte, envolvido em sua primeira polêmica, discutindo com Tite, sendo expulso na final da Copa do Brasil e voltando depois para o maior de seus anos.
Em 2010, não bastava mais ganhar do Grêmio — e é até curioso pensar nisso hoje em dia. Pois D'Alessandro foi o comandante do bi da Libertadores, peça-chave da conquista, eleito o Rei da América pelo jornal El País, do Uruguai. Faltou o Mundial de Clubes, algo que ele mesmo reconhece.
Mas houve compensações. Senão em títulos, mas em sentimento. E nada foi mais simbólico do que 6 de abril de 2014. Depois de um 2013 longe de casa, ora em Novo Hamburgo ora em Caxias do Sul, D'Alessandro era o capitão do jogo oficial de reinauguração do Beira-Rio reformado e bonitão que receberia a Copa do Mundo. Aos quatro minutos e 40 segundos, ele cobrou uma falta em curva, no ângulo, fugindo do goleiro Danilo Lerda. Quando a bola encontrou a rede, o camisa 10 correu em direção à torcida, ajoelhou-se e chorou. O 2 a 1 do Inter sobre o Peñarol era uma marca eterna em sua história.
Depois disso, teve a saída. O período no River Plate coincidiu com a queda do Inter para a segunda divisão e, mesmo assim, seu retorno programado foi cumprido.
— Tinha mais um ano de contrato, mas ele poderia dizer que não queria voltar, assim como outros atletas disseram que não queriam jogar a Série B. Mas não pensou duas vezes. Queria ajudar o clube — contou o vice de futebol da época, Roberto Melo.
D'Alessandro ficou. Esteve em mais uma final de Copa do Brasil, mas uma lesão o tirou do jogo decisivo. Mais veterano, foi para a reserva. Entrava de vez em quando:
— Odair (Hellmann) foi quem mais entendeu meu momento nos últimos anos.
Com Abel, terá neste sábado sua despedida. Em um estádio vazio em razão da pandemia, sabe que receberá aplausos dos colorados diretamente de suas casas.
A última dança. Assim, em português mesmo. Porque D'Alessandro nasceu em Buenos Aires, mas é oficialmente cidadão brasileiro, tem filho gaúcho e fez muito por Porto Alegre. À parte doações sistemáticas, criou o Lance de Craque, evento beneficente que traz grandes nomes do futebol sul-americano ao Beira-Rio e distribui arrecadações a instituições de caridade.
D'Alessandro sai, sim, do Inter. A partir de janeiro, será estranho vê-lo com outro uniforme. Talvez ele vista camisas, calções e meias coloradas em algum jogo festivo, de despedida, com o público de volta. Mas no Beira-Rio, há uma certeza: ele voltará.
Como técnico, coordenador, assessor ou até presidente (porque, afinal, é sócio e quem se atreveria a barrá-lo do conselho?), D'Alessandro voltará ao Inter. E não vai demorar.