Há pouco mais de meio século, tudo era água. Porto Alegre acabava, geograficamente, no que hoje é a Avenida Padre Cacique. O Guaíba avançava sobre a cidade, que mal conhecia a expansão para aquele lado. Era quase como se fosse o litoral. Mas então, há 50 anos, uma ação coletiva expandiu os limites Capital. Um conjunto de dirigentes montou um projeto, o poder público cedeu a área e milhares de colorados levantaram os fundos necessários para fazer do lago a nova casa do Inter, que então mandava seus jogos no histórico, mas acanhado, Estádio dos Eucaliptos. Foi um crescimento da cidade, da região e do clube.
Era uma época de chapéus, fuscas e charme. Nem tudo corria bem: a ditadura militar brasileira perseguia e proibia, os Beatles cansavam dos palcos, americanos e soviéticos tentavam conquistar o espaço e o Rei Pelé caminhava para o milésimo gol. E, por aqui, a busca vermelha para reduzir o domínio tricolor ganhava a ajuda do gigante de concreto que emergiu do aterro sobre o Guaíba.
Mas havia mais do que ser um novo endereço para os colorados. As palavras do bispo Dom Edmundo Kunz, no festival de inauguração do Beira-Rio, resumem o que seria o mantra colorado dali por diante:
— Neste estádio, todos serão iguais. Não haverá diferenças ideológicas, religiosas ou raciais. Nesta majestosa praça de esportes, todos esquecerão seus problemas, mas para viver as alegrias de novas conquistas no terreno desportivo. Iremos nos unir e nos aproximar uns dos outros, numa verdadeira confraternização entre irmãos.
A arquibancada, contemplava, mesmo a todos. Dos ricos, que poderiam comprar cadeiras perpétuas, aos mendigos, que se acotovelavam na coreia. Os coreanos, dizem, formaram a alma do Beira-Rio.
Em campo, a festa foi representada pelo primeiro time da nova casa: Gainete, Laurício, Scala, Pontes e Sadi; Dorinho, Tovar e Bráulio; Valdomiro, Claudiomiro e Gilson Porto, com Urruzmendi e Sérgio Galocha entrando no segundo tempo. Desses, além do histórico camisa 7 colorado, estão vivos Gainete, Pontes, Dorinho, Tovar, Bráulio e Urruzmendi.
Os resultados acompanharam essa nova missão, abrindo um debate: foi a construção do Beira-Rio que ergueu o Inter ou foi o Inter que que impulsionou o sucesso nos primeiros anos do Beira-Rio? O fato é que, daquele histórico gol de Claudiomiro contra o Benfica de Eusébio, um dos melhores jogadores do mundo à época, até 1976, a casa colorada viu títulos em todos os anos. Dois, claro, são especiais: o bi brasileiro de 1975/1976.
— O Beira-Rio mudou tudo. Ele elevou o Inter, transformou na potência que é até hoje. Era uma prova da grandeza do clube. Particularmente, foi muito importante para mim. Menos de cinco anos depois, fui convocado para a Seleção — lembra Valdomiro, um dos remanescentes do primeiro time da nova casa, que frisa: — O grande momento foi a conquista do tri de 1979. Por ter sido invicto, sinceramente, acho que nunca mais vai ser igualado.
Seguiu-se ao grande título um período de seca. Ora acompanhado de "quases", como os vices da Libertadores (1980) e dos Brasileiros (1987 e 1988), ora de momentos que fazem torcedores desejar nunca ter existido. Só a Copa do Brasil de 1992 impediu que as comemorações se limitassem aos Gauchões.
Correram os anos, surgiu o amanhã. E os anos 2000 devolveram os sorrisos aos colorados. A casa viu a volta por cima de Abel Braga. Técnico do tombo com o Olimpia na Libertadores de 1989, comandou o time que pintou a América de vermelho em 2006, dando ao Beira-Rio a tão sonhada taça. Foi o treinador, também, que trouxe de volta o troféu do Mundial, em dezembro, quando as arquibancadas encheram para receber os heróis de Yokohama.
Foi uma década de títulos e festas. Era quase certo: jogar em casa significava vencer. Assim vieram a Recopa Sul-Americana de 2007, a Copa Sul-Americana de 2008, a Libertadores de 2010 e a Recopa de 2011. O Inter acostumou os colorados a comemorar.
Chegou a Copa do Mundo de 2014. Para receber os melhores jogadores do planeta, o estádio foi remodelado e modernizado. A cobertura deu uma fachada diferente, colorida. Mudou o cartão-postal de Porto Alegre.
— A repaginação atualizou nosso estádio sem alterar sua essência: permaneceu com a história a com alma que sempre o caracterizou — comenta Fernando Carvalho, ex-presidente do Inter.
O novo Beira-Rio viu a inimaginável Série B em 2017, depois do dramático rebaixamento no ano anterior. E superou também isso. Hoje, retornou à Libertadores, sonha com a volta das grandes conquistas.
— O antigo já era bonito, o novo ficou melhor. Jogadores, não importa o quanto ganhem, passam. O Beira-Rio e os colorados ficam. O estádio tem uma história bonita, foi construído pela torcida, que é a memória viva do clube — diz D’Alessandro, o maior ídolo da atualidade.
O argentino captou a essência. O Beira-Rio, enfim, é a alma de seus torcedores. Como a vó Noêmia, o juiz Marcelo, o fotógrafo Diego, o motorista Geison, a menina Alice. São os colorados que viveram as cinco décadas do estádio, presenciaram o melhor e o pior. E que nos ajudam a contar o primeiro meio século da casa colorada.